“A luta pela democracia é permanente”, diz Liège Rocha

Contee Conta sobre os 60 anos do golpe de 1964: para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça

No episódio especial do Contee Conta deste 1º de abril, a Confederação se uniu à histórica reflexão sobre os 60 anos do golpe civil-militar de 1964, momento crucial da história brasileira, que instaurou 21 anos de ditadura e mergulhou o país nas trevas. Para trazer uma perspectiva enriquecedora, contamos com a presença marcante de Maria Liège dos Santos Rocha, renomada ativista nascida do Piauí e criada na Bahia, que  atualmente é coordenadora de Relações Internacionais da União Brasileira de Mulheres (UBM). Liège Rocha, também integrante destacada da Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM) e coordenadora nacional dos direitos humanos do PCdoB, traz sua vasta experiência para nos conduzir em uma análise profunda dos desafios enfrentados durante os anos de ditadura.

“Nós tínhamos, na rua onde morávamos em Salvador, uma turma de jovens que frequentávamos a igreja de Santana e criamos um clube que se chamava Berimbau. Fazíamos festinhas uma vez por mês na casa de cada um, no São João organizávamos a quadrilha… Mas não ficávamos somente na cultura, começamos a pensar também na questão política e convidávamos professoras e professores para fazer debates para gente sobre a situação e sobre a realidade. Isto foi em meados de 1964 e 1965”, conta Liège sobre o início de sua militância.

Primeiras prisões

A coordenadora dos direitos humanos do PCdoB relembra que foi por meio dessas atividades que ela acabou conhecendo a Ação Popular (AP). Assim, quando ela ingressou na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 1967, já militava e tinha toda essa participação nos movimentos estudantis. Com isso, ela se tornou presidente do Diretório Acadêmico do curso de biblioteconomia e documentação. Em 1968, ela foi presa pela primeira vez, juntamente com jovens do país inteiro, no congresso clandestino da UNE realizado em Ibiúna.

Ela enfrentaria outras provações. “Em 1969, para nossa surpresa, fomos proibidos de entrar na universidade, tivemos nossa matrícula cassada. Se eu entrasse na universidade, seria presa em flagrante.” A prisão acabou acontecendo durante a manifestação “Fora Rockfeller”, em Salvador. “e

Estávamos indo para essa manifestação, eu e mais duas amigas da faculdade. E o delegado, que já me conhecia por ter cassado a minha matrícula, me reconheceu lá e mandou me prender. Uma colega conseguiu fugir, mas a outra também foi presa e ficamos 8 dias na delegacia feminina sendo interrogadas.”

Clandestinidade e morte da filha

Na época, a AP percebeu que não havia condições para que Liège permanecesse em Salvador. “Então, em 1970, fui para a clandestinidade. Fiquei dois anos em Fortaleza, dois anos em Recife e um ano no Rio de Janeiro. Só voltei para Salvador em julho de 1975”, relembra.

“Fui levada de onde eu morava em Recife para Alagoas, para encontrar com meu sogro, pois a minha filha estava com dois meses”. De lá, ela seria levada a Salvador. “Meu marido Arthur [de Paula] ficou em Recife. Aí a polícia de Recife ligou para o meu pai procurando por mim, então resolvemos que eu deveria fugir e fui para outro estado com a minha filha. Fiquei um ano por lá. Arthur foi preso e barbaramente torturado por 40 dias. Voltei a Salvador em julho de 75 e, em agosto, minha filha veio a falecer, sem que o pai pudesse se despedir”, lamenta.

Movimento Feminino pela Anistia

Em 1976, Liège retornou à universidade e conseguiu concluir o último ano do curso. Quando sua segunda filha completou dois meses, Arthur foi novamente preso e assim a criança passou a visitar o pai na cadeia durante todo o seu primeiro ano de vida. No mesmo ano, com a influência do Movimento Feminino pela a Anistia em São Paulo, Liège criou com companheiras de luta, o Movimento Feminino pela Anistia na Bahia e, tempos depois, o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) na Bahia.

Mesmo com a anistia, em 1979, a perseguição não arrefeceu. Liège voltou a ser presa em 1982, durante lançamento de livro sobre a Guerrilha do Araguaia, e teve sua casa invadida pela polícia em 1984. “Continuou [a perseguição] porque não arriamos as bandeiras”, considera.

Luta permanente

O coordenador-geral da Contee, Gilson Reis perguntou para Liège Rocha que correlação ela faz entre o golpe de 64 e os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, bem como o que podemos fazer no ano de 2024 para afastar esse fantasma que ronda a sociedade brasileira.

“Acho que a luta em defesa da democracia é uma constante, porque sabemos que as forças reacionárias e fascistas nunca vão admitir a existência e conviver com a democracia plena”, observa. “Derrotamos Bolsonaro, mas não derrotamos toda a força reacionária e neofascista.”

Para a militante política, só será possível derrotar o inimigo se houver união de forças. “A luta pela democracia é luta permanente. Batalhamos para derrotar aquele regime e hoje não podemos deixar de ficar alertas, unidos e firmes na resistência para que possamos construir de fato uma verdadeira democracia.”

Ditadura nunca mais

Repetindo o lema “ditadura nunca mais”, para Liège, é importante que 1964 e o significado de ditadura na vida do povo brasileiro não sejam esquecidos. “Precisamos avançar cada vez mais na construção de uma verdadeira democracia no Brasil. Essas questões estão vivas e não podemos esquecer. Não podemos acreditar que está tudo bem, pois, se não trabalharmos, este governo está ameaçado. Por isso precisamos nos unir, manifestarmos nossa solidariedade e mostrar que queremos cada vez mais Brasil, melhor, igualitário e independente, que possamos construir uma integração regional na América Latina e impedir que forças de direita avancem no nosso continente”, destaca.

“Gosto dizer que nós, mulheres, tivemos um grande protagonismo nesta história. Durante muito tempo esse protagonismo foi invisibilizado, mas nós é que começamos a luta pela anistia.”

Assista ao programa na íntegra

Vitoria Carvalho, estagiária sob supervisão de Táscia Souza

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