Como o negacionismo e os erros do governo levaram à tragédia de 100 mil mortes por covid no Brasil

Ao minimizar pandemia, governo Bolsonaro falhou em coordenar resposta a ela. Ex-integrante do Ministério da Saúde reconhece falha na estratégia de testagem

Por Marcella Fernandes

O Brasil encerrará esta semana atingindo o marco de 100 mil mortes causadas pela covid-19. A dimensão numérica do impacto da pandemia ultrapassa de longe todas as outras tragédias nacionais e causas mais comuns de óbitos no País. Após 5 meses de uma crise conduzida por uma governo que minimiza o vírus, sem um titular no Ministério da Saúde há quase 90 dias, sanitaristas à frente do debate sobre a epidemia afirmam que o cenário podia ter sido menos devastador.

“Era perfeitamente possível não termos chegado a 100 mil mortes. Provavelmente se tivéssemos continuado com a gestão do nosso primeiro ministro de saúde [Luiz Henrique Mandetta] a conduzir a pandemia, na época em que tínhamos um. A partir do momento em que você assume nacionalmente o negacionismo da ciência, da doença e da pandemia, com certeza esse cenário se torna inevitável”, afirma a bióloga Natália Pasternak, fundadora do Instituto Questão de Ciência.

Sem reconhecer a dimensão da crise, fica difícil enfrentá-la. Ao mesmo tempo em que negava a gravidade da epidemia, chegando a ocultar dados, o governo de Jair Bolsonaro apostou em pautas diversionistas, estratégia usada pelo bolsonarismo também em outras áreas.

Na noite de quinta-feira (6), o presidente mencionou, durante uma live, o número trágico. “A gente lamenta todas as mortes, está chegando ao número de 100 mil talvez hoje, é isso? Mas vamos tocar a vida, tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”, afirmou.

Segundo Pasternack, “há um contrassenso” na postura do presidente. “Você nega a doença, mas ao mesmo tempo apresenta uma cura milagrosa. E essas curas milagrosas tiram a atenção dos problemas reais porque se somam ao discurso de que o ‘problema já nem existe, mas mesmo que exista, tá aqui a solução, então vida normal, nada está acontecendo’ e ainda se investe dinheiro público e a esperança das pessoas. Então você desinforma, deseduca a população e desperdiça recursos públicos com coisas que não funcionam”, afirma, referindo-se à obsessão do governo Bolsonaro com medicações como a cloroquina.

Desde o início da pandemia, o presidente adotou uma postura negacionista. Enquanto a comunidade científica enfatizava a importância do isolamento social para frear o ritmo de transmissão do SARS-CoV-2, Bolsonaro encampou o discurso de que era preciso “salvar empregos”. O fechamento do comércio nas cidades passou a ser tratado como uma disputa política, em um falso dilema entre economia e saúde.

A mesma polarização foi adotada pelo governo em outra frente: respostas milagrosas, que prometiam uma cura. Ainda que após 7 meses da descoberta do vírus ainda não haja vacina ou um remédio com uso comprovado cientificamente para tratar a covid-19, o governo Bolsonaro adotou a cloroquina como bandeira. A distribuição do medicamento que aumenta o risco cardíaco e é ineficaz contra o novo coronavírus ultrapassou 5 milhões de comprimidos, de acordo com o Ministério da Saúde. No âmbito municipal, um fenômeno semelhante ocorreu com a distribuição de ivermectina pelas prefeituras.

A pressão pela adoção de medidas na contramão da ciência levou à saída de 2 ministros da Saúde: Luiz Henrique Mandetta, em 16 de abril, e Nelson Teich, em 15 de maio. Desde então, a pasta que deveria ser protagonista na resposta à pandemia é coordenada por um interino, o general Eduardo Pazuello, sem experiência na gestão de saúde pública.

90 dias sem ministro: A falta de coordenação

Na avaliação do infectologista Julio Croda, ex-diretor do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, a saída dos 2 ministros foi um ponto de virada. “Foi um mês de diferença entre esses 2 episódios em um dos momentos mais críticos da pandemia, em que a região Norte já vinha sofrendo – a região Nordeste também, Fortaleza principalmente, além de São Paulo – e que você trocou o comando e também muito da equipe técnica”, afirma. O médico deixou a pasta em março, ainda na gestão Mandetta.

Hoje a cúpula do ministério é formada por pessoas sem experiência em gestão do sistema de saúde, em um processo de militarização. Desde maio, a pasta passou a contar com 25 militares em postos de comando e mais de 300 em cargos nos demais escalões.

Assim como Croda, outros nomes da equipe técnica que iniciou a estratégia de resposta à crise e deixaram a pasta são: João Gabbardo, secretário-executivo exonerado pouco depois de Mandetta; e os secretários Wanderson Oliveira (Vigilância) e Denizar Vianna (Ciência e Tecnologia), que saíram da Esplanada dos Ministérios após a demissão de Teich.

É unanimidade entre os sanitaristas que a falta de coordenação foi o principal erro. “A questão não é chegar aos 100 mil óbitos. É chegar aos 100 mil com óbitos que poderiam ser evitados, principalmente aqueles pacientes que morreram nas suas residências ou em unidades de pronto atendimento. Pacientes que morreram fora de um leito de terapia intensiva são mortes que podiam ter sido evitadas”, afirma Croda.

A primeira cidade a registrar um cenário de caos foi Manaus (AM), única com UTI (Unidade de Terapia Intensiva) em todo o estado do Amazonas. Em 10 de abril, profissionais de saúde relatavam que o Hospital Delphina Aziz seria o primeiro hospital público de referência do País a colapsar em razão da pandemia.

No Rio de Janeiro, outro estado gravemente afetado pela epidemia, levantamento da Defensoria Pública aponta que entre abril e junho pelo menos 730 pacientes, com quadros clínicos que incluíam insuficiência respiratória, morreram à espera de internação em enfermaria ou UTI. A escassez de recursos levou equipes a estabelecerem critérios para decidir uma ordem de prioridade entre os pacientes.

Para Croda, com uma boa coordenação, o governo federal poderia ter apoiado estados e municípios para evitar esse nível de colapso. “Nós nunca tivemos um plano federal para implementação de medidas de distanciamento social principalmente para monitorar cidades que iriam colapsar e apoiar essas cidades, com o fechamento. Poderia ter enviado tropas do Exército para garantir que ninguém saísse de casa, poderia aumentar estrutura de hospitais de campanha e a gente viu algumas tragédias sendo contadas”, afirma.

Segundo o infectologista, a maioria da população “normalizou” esses mil óbitos diários por acreditar que esse seria o curso da doença no País independentemente de quem estivesse no poder. Mas a variação das taxas de mortalidade nos estados é uma evidência de que a resposta do poder público faz diferença na dimensão da tragédia, de acordo com o pesquisador.

“Todos acima da média poderiam ter um apoio do governo federal no sentido de tentar equilibrar as medidas tanto de distanciamento quanto de assistência na oferta de leitos de terapia intensiva para evitar esses óbitos”, afirma Croda.

A taxa de mortalidade nacional é de 45,6 por 100 mil habitantes, de acordo com painel do Ministério da Saúde atualizado em 4 de agosto. Dezessete unidades da Federação registram indicador superior a esse valor, sendo os mais altos Roraima (87,2 mortes por 100 mil habitantes), Ceará (85,5), Amazonas (79,6) e Rio de Janeiro ( 79,4).

Epidemia está longe de fim 

Os números devem mudar porque a epidemia ainda está longe de acabar no Brasil. Apesar de ter sido observado certo arrefecimento nas grandes capitais, como Manaus e São Paulo, a crise sanitária continua grave em boa parte do País, especialmente no interior e em estados do Sul e Centro-Oeste.

Quando olhamos os dados nacionais, os gráficos epidemiológicos assumiram a forma de platô, em vez de um pico de casos e mortes acumulados. Por outro lado, os casos e óbitos diários, que indicam o ritmo da epidemia, não estabilizaram.

Houve uma inversão de comportamento ao longo do tempo, com a interiorização da epidemia. Segundo boletim mais recente do Ministério da Saúde, 5.475 (98,2%) dos municípios têm casos confirmados de covid-19 e 3.476 (52,4%) cidades registraram mortes causadas pela covid-19. A curva de casos acumulados das capitais está diminuindo, e a do interior está aumentando, mas a segunda ainda não ultrapassou a primeira.

A semana encerrada em 25 de julho foi uma das mais graves da pandemia do novo coronavírus no Brasil. Houve um recorde de casos registrados da covid-19, com 319.653 notificações, um aumento de 36% em relação à semana anterior. A média diária de casos registrados foi de 45.665, contra 33.573 na semana anterior.

Já a média diária de óbitos na semana encerrada em 25 de julho foi de 1.029. A primeira vez que o Brasil registrou mais de mil mortes por dia foi em 19 de maio. Desde então, isso aconteceu mais de 40 vezes.

As milhares de mortes comovem cada vez menos a população em um cenário onde a reabertura das cidades foi decidida enquanto a epidemia ainda estava descontrolada. A transmissão do vírus controlada e um sistema de saúde com capacidade de detectar, testar, isolar e tratar todas as pessoas com coronavírus e os seus contatos mais próximos são dois requisitos para flexibilização do isolamento recomendadas pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e ignoradas pelos governantes no Brasil.

“A gente prioriza bares e restaurantes e prefere nem pensar em abrir as escolas porque teria de fazer realmente alguma coisa mais eficaz para isso acontecer. É muito triste ver que a gente não consegue contar com o engajamento da população para medidas que funcionaram tão bem em outros países, como Alemanha, Coreia do Sul, Nova Zelândia, que estão abrindo com segurança”, lamenta Natália Pasternak.

Para a bióloga que trabalha com divulgação de conteúdo científico, ainda que a ciência tenha ganhado mais espaço no debate público, as medidas de conscientização não foram efetivas. “Para sair da pandemia a gente precisa de uma atitude colaborativa. Isso é um problema da sociedade. A solução está também na sociedade. Está na nossa atitude. Está na nossa capacidade de convencer a população a se engajar. E nós falhamos”, afirma.

Devido à forma como é transmitido o novo coronavírus – por meio do contato com secreções contaminadas, como gotículas de saliva, espirro, tosse e catarro – restringir a circulação de pessoas é a única forma de frear a contaminação. Reduzir esse ritmo é determinante em um cenário em que os recursos dos sistema de saúde são limitados, desde leitos de UTI até médicos intensivistas e medicação usada para sedar pacientes que precisam desse tipo de cuidado.

O início do colapso

As cenas na primeira cidade a colapsar se tornaram emblemáticas na história da epidemia no Brasil. “O que aconteceu em Manaus foi um desastre mas porque não conseguimos implementar medidas de isolamento social em Manaus, Belém, Fortaleza, mesmo no Rio de Janeiro. Não fizemos nenhum lockdown digno desse nome. E o isolamento social foi na maior parte do País – se não em todo o País – abaixo do esperado e isso aumentou o número de óbitos”, enfatiza Gonzalo Vecina, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo) e presidente do Conselho do Instituto Horas da Vida.

Na avaliação do sanitarista que já esteve à frente da Secretaria de Saúde da cidade de São Paulo e da Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária), um dos erros logo no início foi na estratégia de testagem. “Parte da explicação de por que, onde e como erramos diz respeito ao rastreamento de contatos com agentes do Saúde da Família. Se nós tivéssemos utilizado desde o início da pandemia o poder da estratégia do Saúde da Família estaríamos numa situação melhor também. Os agentes comunitários foram pouco mobilizados e tiveram dificuldade para serem mobilizados por falta de equipamento de proteção individual”, afirma.

O rastreamento de contatos consiste em identificar e isolar a pessoa contaminada, assim como indivíduos com quem ela entrou em contato próximo. Esse grupo deve adotar uma quarentena e monitorar sintomas da covid-19. A estratégia foi usada em países como Nova Zelândia e Vietnã.

Para que os agentes do programa Saúde da Família pudessem coletar as amostras por meio do teste RT-PCR (moleculares), é necessário uso de máscara específica e do protetor facial para garantir a segurança dos profissionais de saúde.

Até o momento mais de 31 mil profissionais de enfermagem foram contaminados e 325 morreram por causa do novo coronavírus, segundo levantamento do Conselho Federal de Enfermagem. De acordo com entidades do setor, o Brasil responde por 30% das mortes de enfermeiros no mundo.

Além da coleta adequada das amostras de secreção para os testes RT-PCR, o ideal é que o resultado do exame fosse rápido. “Como demora muito para ficar pronto, o paciente que é suspeito de ter covid mas não fica isolado fica disseminando o vírus na sociedade, o que é um desastre. Isso nós tivemos muito. Testar pouco significou deixar livremente muitas pessoas que eram portadoras do vírus e estavam disseminando o vírus na sociedade”, afirma Vecina.

No início da epidemia, os exames demoravam mais de duas semanas para serem processados no estado de São Paulo, por exemplo, que conta com mais de 44 milhões de habitantes. De acordo com boletim mais recente do Ministério da Saúde, atualmente 90,1% dos testes moleculares são analisados pelos laboratórios públicos em até 5 dias.

Considerados o padrão ouro, os exames moleculares ainda têm alcance limitado. O Ministério da Saúde chegou a prometer 14,9 milhões de unidades. Segundo dados mais recentes, 5,1 milhões foram distribuídos e 2,6 foram processados até 25 de julho.

Na prática, só casos graves foram testados. O uso dos testes moleculares perdeu força tanto com a ampliação do diagnóstico clínico no fim de junho quanto com a disseminação dos testes sorológicos rápidos. Esse tipo de exame detecta a presença de anticorpos, mas é menos preciso. “Foi um erro grosseiro porque, em grande medida – e me lembro muito dessas discussões – essas decisões aconteceram sem muito conhecimento sobre o que era o RT-PCR e o que era o teste sorológico”, desta Gonzalo Vecina. Esse tipo de exame foi adotado tanto pelo governo federal quanto por gestores locais.

Integrante da cúpula do Ministério da Saúde até março, Croda afirma que no início do ano havia uma limitação de oferta de testes no mercado, mas admite também uma falha na estratégia. “O Brasil falhou porque deveria ter oferecido mais testes. No geral, e aí não estou falando de governo federal, estadual ou municipal, a gente deveria ter feito a estratégia de diagnóstico e de contact tracing [rastreamento de contatos] melhor, principalmente usando a atenção primária. Isso poderia ter sido intensificado”, reconhece.

Questionado sobre essa decisão, o infectologista afirma que não dependia só governo federal. ”É uma ação coordenada. O ministério poderia ter recomendado que a atenção primária fizesse isso, mas a ação propriamente dita é em nível municipal”, afirma Croda.

Desigualdade social

Além das lacunas no sistema de saúde, a falhas na implementação de políticas de proteção social fizeram que a desigualdade social fosse determinante no perfil das 100 mil vítimas da covid-19. No Brasil, alguns pesquisadores têm falado de um “rejuvenescimento da pandemia” devido a fatores sociais que determinam a letalidade da doença. Além das comorbidades, a cor da pele e a classe social têm decidido quem vive ou não.

A chance de pretos e pardos sem educação formal morrerem devido ao novo coronavírus é 4 vezes maior do que de brancos com nível superior, de acordo com pesquisa do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, formado por pesquisadores da PUC-Rio (Universidade Católica do Rio de Janeiro), da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), da USP e do IDOR.

Foram diversos os entraves – desde problemas de acesso à internet a fraudes – até o valor do auxílio emergencial chegar nas mãos de quem precisava do dinheiro para ficar em casa. O benefício de R$ 600 é destinado a trabalhadores informais e de baixa renda.

“A epidemia se alimenta de encontros. Essa é a razão de termos de 4 a 5 vezes uma maior predileção dessa doença pelos pobres. Essa questão é muito crítica: criar os colchões de proteção social. Mais à frente, quando a epidemia passar, nós temos que encontrar alternativas adequadas para reduzir o grau de desigualdade social. Criar políticas públicas de distribuição de renda e a partir daí elevar o nível da educação e da saúde para que as pessoas tenham acesso à educação e saúde e revolucionem suas respectivas vidas”, afirma o sanitarista Gonzalo Vecina.

Ao pensar no pós-pandemia, o ex-presidente da Anvisa também chama atenção para outro problema social que tem impacto direto na saúde: o saneamento básico.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB), divulgada em julho pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 39,7% dos municípios brasileiros não têm serviço de esgoto. Já o total de domicílios que  não recebiam água por rede de distribuição em 2017 era de 9,6 milhões.

″Temos que corrigir essas desgraças com as quais convivemos alegremente até hoje. Não tem cabimento você não ter saneamento básico melhor do que temos hoje. Uma parte importante da população sem acesso à água tratada, mais da metade da população sem acesso a esgoto, à coleta de lixo. Isso é um crime que temos que resolver”, ressalta Gonzalo Vecina.

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