Retrospectiva 2019: 365 anos (e não dias) de retrocesso

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

O substantivo comum retrospectiva — originário do termo latino retrospectare —, em seu sentido literal, significa olhar para trás; daí a razão de ela sempre registrar fatos pretéritos, que marcaram a vida social de alguém ou política, de um país, em determinado período histórico.

No Brasil sob Bolsonaro, retrospectiva não é simples olhar para trás; desafortunadamente, representa caminhar para trás, no sentido anti-horário, do pouco de luz que havia, para as trevas.

Parafraseando o saudoso e sempre presente guerreiro da liberdade e da dignidade humana, Eduardo Galeano, em seu livro  “De pernas pro ar: A escola do mundo ao avesso”, no Brasil ao avesso, lapidado por Bolsonaro, pelo Congresso Nacional e pelo STF, o chumbo aprendeu a flutuar; a cortiça, a afundar; a cobra, a voar; e as nuvens, a arrastar.  

A não ser os fundamentalistas, cegados pelo ódio sem causa — que, parafraseando Saramago em seu livro “Ensaio sobre a cegueira”, são cegos que veem; cegos que, vendo, não veem —, e os que fazem da desgraça alheia o seu refrigério (notadamente, os representantes do capital), não há um só cidadão ou cidadã decente que aprove as palavras e os atos de Bolsonaro.

“Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira, Isto é diferente, Farás o que melhor te parecer, mas não te esqueças daquilo que nós somos aqui, cegos, simplesmente cegos, cegos sem retóricas nem comiserações, o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos, Se tu pudesses ver o que eu sou obrigada a ver, quererias estar cego, Acredito, mas não preciso, cego já estou, Perdoa-me, meu querido, se tu soubesses, Sei, sei, levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das pessoas, é o único lugar do corpo onde talvez ainda exista uma alma, e se eles se perderam”

Mas, na eventual e pouco provável hipótese de ainda pairar alguma dúvida sobre a malignidade do governo Bolsonaro, registram-se, aqui, os seus atos mais cruéis, praticados ao longo do ano de 2019 (não o fazendo mês a mês, como é praxe em retrospectiva, posto que os seus efeitos deletérios exalam cheiro de enxofre, diuturnamente).

I. Primeiros atos atentatórios à ordem democrática, praticados ao dia de sua posse, 1º de janeiro de 2019: 

1. Extinção do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), criado aos 26 de novembro de 1930, que representava a garantia mínima de fiscalização de cumprimento dos direitos trabalhistas e das normas de saúde e segurança do trabalho.

Esse ato, por certo o mais simbólico de todos já praticados, constitui-se na senha ao capital de que ali começava a era, com duração de pelo menos quatro anos, de total e absoluto afrouxamento das regras de fiscalização das referidas normas, para que prevaleçam, sem restrição alguma, os seus nefastos interesses. Isso vem se confirmando a cada medida provisória baixada (tecnicamente é editada), cada projeto de lei apresentado e cada lei e emenda constitucional aprovadas.

 Em outras palavras: findava a era de valorização do trabalho, ainda que incipiente, e começava a do reinado absoluto de sua exploração sem limites. 

2. Reajuste do salário mínimo abaixo do valor previsto na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que era de R$ 1.006. O Decreto N. 9661, de 1º de janeiro de 2019, fixou-o em R$ 998.

Essa decisão representou a cruel senha de que chegava ao seu melancólico fim a era de valorização do salário mínimo — que atinge diretamente nada menos que 48 milhões de brasileiros/as —, responsável pelo seu crescimento real de 74% no período de 2003 a 2016. Esse fim se confirmou em abril de 2019, com o término de vigência da Lei N. 13.152/2015, que a garantia.

Para se aquilatar a importância dessa política, basta que se diga que, sem ela, o salário mínimo atual seria de R$ 573.

3. Na formação de seu ministério, o presidente Bolsonaro esmerou-se para garantir que todos os ministros fossem joio da mais apurada qualidade, nos quesitos desapreço pelos cinco fundamentos da República, ditados pelo Art. 1º da Constituição Federal (CF), quais sejam: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político.

Desses fundamentos, Bolsonaro e seus ministros somente se interessam pela segunda parte do quarto fundamento, que é a dos valores da livre iniciativa; para eles, a propriedade está acima de tudo e a nada se submete.

O ministério de Bolsonaro faz lembrar o da Regência Una de Araújo Lima (1838), que era conhecido como o das capacidades, exatamente porque era composto pelo que havia de mais regressista. A ponto de o ministro da Justiça, Bernardo Pereira Vasconcelos, declarar, em discurso na Câmara dos deputados (“Fui liberal.. Sou regressista”). Parece que a diferença entre ele e Moro, ministro da Justiça de Bolsonaro, além do tempo, é a de que este, a não ser por perjúrio — o qual ele aprecia muito —, não pode dizer que algum dia tenha sido liberal.

Aliás, Moro, como ministro da Justiça, faz revirar nos seus respectivos túmulos Savonarola, Bernard de Guy e Tomás de Torquemada, os temidos verdugos da inquisição.

O atual ministro da Educação, além de nada conhecer sobre esse que é o primeiro dos direitos fundamentais sociais escolhidos pelo Constituinte de 1987/1988, odeia-o.

Ao ministro da Educação, aplica-se a ironia de Guerra Junqueiro, em seu poema “A escola portuguesa”:

Como querem que despontem
Os frutos na escola aldeã,
Se o nome do mestre é — Ontem
E o do discíp’lo — Amanhã!

Como é que há-de na campina
Surgir o trigal maduro,
Se é o Passado quem ensina
O b a ba ao Futuro!”

Justiça se faz ao ministro da Educação, o seu nome não é ontem; é, sim, trevas!

 

O ministro das Relações Exteriores, espontaneamente, declarou-se subserviente aos interesses norte-americanos, fazendo-o de forma vexatória e maculadora da diplomacia brasileira, que historicamente primou pela independência e altivez. Mesmo nos períodos mais tenebrosos da política brasileira, a sua diplomacia vergou-se ao imperialismo, como o faz, desde o primeiro dia, o atual ministro.

 

II. A continuidade da via dolorosa dos fundamentos da República e da garantia da ordem democrática, sob Bolsonaro:

1. A Medida Provisória (MP) 871 — convertida na Lei N. 13.846, de 18 de junho de 2019 —, pomposamente, chamada de MP do pente fino, instituiu: “o Programa Especial para Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade, o Programa de Revisão de Benefícios por Incapacidade, o Bônus de Desempenho Institucional por Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade do Monitoramento Operacional de Benefícios e o Bônus de Desempenho Institucional por Perícia Médica em Benefícios por Incapacidade”.

Esses programas, a rigor, põem sob suspeita todos os requerimentos de benefício previdenciário, bem como os benefícios já concedidos, quebrando a garantia constitucional de presunção de inocência, o que importa a transferência do ônus da prova, que é do Poder Público — no caso o INSS —, para os segurados previdenciários.

Além da quebra da presunção de inocência, a MP e a lei dela resultante criaram bônus (prêmios) para os peritos e os servidores responsáveis pela análise de requerimentos de benefícios, pago por benefício cancelado e/ou indeferido, conforme a competência.

Não satisfeitas, retiraram dos sindicatos de trabalhadores rurais (STRs) a competência — que, por convênio com a previdência social, exerciam há décadas — para fornecer declaração aos segurados especiais rurais, atestando essa condição, o que se constituía em início de prova material.

Os deletérios efeitos dessas medidas já são duramente sentidos pelos segurados especiais rurais. Segundo dados da própria previdência social, divulgados em audiência realizada (5/12) na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara Federal — por requerimento dos deputados federais Vilson da Fetaemg e Heitor Schuch, ambos do PSB, o primeiro de Minas Gerais e, o segundo, do Rio Grande do Sul —, em 2019, 60% dos requerimentos de benefícios foram indeferidos; antes da MP e da lei, esse percentual era de 30%.

Isso sem contar os milhares de benefícios cancelados sumariamente, com amparo nessas impiedosas normas.

2. A MP 881 — convertida na Lei N. 13.874, publicada em 20 de setembro de 2019 — canonizou a propriedade e o “livre mercado”, pois “Institui a Declaração de Direitos da Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado; […]; e dá outras providências”.

Já no Art. 1º, § 1º, estabelece a sua prevalência “na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente”.

Para suplantar qualquer dúvida quanto à sua supremacia, dispõe, no § 2º do Art. 1º:  “Interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas”.

Para sacramentar a prevalência dos interesses da liberdade econômica na interpretação de normas jurídicas, estipula, no seu Art. 3º, que são direitos de toda pessoa natural ou jurídica, dentre outros:

“II – desenvolver atividade econômica em qualquer horário ou dia da semana, inclusive feriados, sem que para isso esteja sujeita a cobranças ou encargos adicionais, observadas:

a) as normas de proteção ao meio ambiente, incluídas as de repressão à poluição sonora e à perturbação do sossego público;

b) as restrições advindas de contrato, de regulamento condominial ou de outro negócio jurídico, bem como as decorrentes das normas de direito real, incluídas as de direito de vizinhança; e

c) a legislação trabalhista;

III – definir livremente, em mercados não regulados, o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda;

[…]

V – gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário”.

Na mesma esteira e com idêntica finalidade, altera diversos Arts. do Código Civil (CC), estabelecendo, no Art. 113, §§ 1º e 2º:

“§ 1º  A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:

I –     for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio;

II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio;

III – corresponder à boa-fé;

IV – for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e

V – corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.

§ 2º  As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.”

Como se não bastasse tudo isso, acrescenta o Art. 421-A ao CC, que estabelece:

“Art. 421-A.  Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:

I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;

II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e

III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”.

Como o Art. 8º, § 1º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) — com a redação dada pela Lei N. 13.467/2017, que é a lei da reforma (ou melhor, deforma) trabalhista — determina que “O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho”, parece induvidoso que a busca da aplicação dos  citados dispositivos da Lei N. 13.874 no processo do trabalho será a tônica das contestações às reclamações trabalhistas, com a espúria finalidade de fazê-los prevalecer-se sobre as normas trabalhistas, ao falacioso argumento de que as condições lesivas aos trabalhadores foram “livremente pactuadas”, por “acordo individual simétrico” entre as partes, o que as torna insuscetíveis de interpretações desfavoráveis à liberdade econômica, nos termos da Lei N. 13.874/2019. 

Dando prosseguimento à triste saga de redução e supressão de direitos trabalhistas, a lei sob comentários promoveu diversas alterações na CLT, sendo que nenhuma delas, por óbvio, foi introduzida com o propósito de beneficiar o trabalhador e/ou de lhe dar segurança jurídica. Ao contrário, como sói acontecer em todas normas recentes, visam a prejudicá-lo.

Dentre as alterações promovidas na CLT, merecem destaque as que modificaram os Arts. 29 e 74. A primeira porque, em prejuízo dos trabalhadores, aumentou o prazo para a anotação do contrato de trabalho da CTPS e as suas respectivas condições, de dois dias corridos para cinco dias úteis.

As alterações do Art. 74 são altamente nocivas aos trabalhadores, por várias razões, sobressaindo as seguintes:

a) o controle de jornada (ponto) somente é obrigatório nas empresas com mais de 20 empregados (a redação anterior exigia-o das empresas com mais de dez empregados);

b) cria a esdrúxula e lesiva figura de registro de ponto por exceção à jornada, que consiste na dispensa de controle de entrada e saída do empregado, fazendo letra morta do § 1º do Art. sob realce, o que, até prova em contrário,  de responsabilidade do empregado, pressupõe que se cumpriu fielmente a jornada regular, nela incluídos os intervalos para repouso e alimentação.

Por esse dispositivo legal, somente eventuais horas extras devem ser anotadas no controle de ponto. Não havendo anotações dessa natureza, não há de se falar em trabalho extraordinário. 

A quem essa alteração beneficiará? Parece fora de dúvida que apenas as empresas dela se beneficiarão.

3. A Emenda Constitucional (EC) 103/2019 — resultante da Proposta de Emenda Constitucional 6/2019, de iniciativa de Bolsonaro —, fundada em “debate desonesto” (nas felizes palavras do professor Eduardo Fagnani) — foi promulgada pelo Congresso Nacional no dia 12 de novembro de 2019 e descaracteriza por inteiro a previdência social implantada pela Constituição Federal (CF) de 1988, de caráter universal e solidário, constituindo-se na mais ampla política social pública, fundada na inclusão social e na distribuição de renda.

As insinceras palavras do presidente do Senado Federal, Davi Alcolumbre, ditas logo após a referida conclusão, dão a exata dimensão do conteúdo avassalador da reforma aprovada: 

O Parlamento brasileiro entrega a maior reforma da previdência da história deste país para o Brasil e para os 210 milhões de brasileiros”.

Como o presidente do Senado foi um dos principais responsáveis pela aprovação dessa reforma, não se esperava que ele tivesse a decência de dizer o seu real significado.

Para entendê-lo, basta que se substitua o substantivo comum reforma, usado pelo presidente do Senado, pela flexão do verbo deformar na 3ª pessoa do singular, deforma, que nada mais é do que descaracterizar ou desfigurar; o mesmo que dizer mudança para pior.

A partir do fatídico dia 12 de novembro, é forçoso dizer e reconhecer que a previdência social preconizada e garantida pela CF de 1988 não mais existe. A impropriamente chamada “nova previdência” não passa de pálida caricatura dela. 

Restaram tão somente três garantias inalteradas: a) a idade mínima exigida dos trabalhadores rurais e do produtor familiar, 55 anos para a mulher e 60, para o homem; b) a de que nenhum benefício previdenciário será inferior ao salário mínimo; e c) o reajustamento dos benefícios, para preservar-lhes, em caráter permanente o valor real, ou seja, reajuste anual pela inflação. Tudo o mais foi alterado, e para pior, ou seja, para lhe reduzir o alcance social.

Além das três garantias enumeradas no item anterior, somente a idade mínima exigida dos servidores públicos da União e dos segurados do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) — que abrange os segurados regidos pela CLT, os contribuintes individuais, autônomos, facultativos, dona de casa, estudantes etc. — que ingressarem na previdência após a promulgação da Emenda Constitucional (EC) continua determinada pela CF. 

A idade mínima exigida dos servidores dos estados e dos municípios será determinada pelas respectivas constituições estaduais e leis orgânicas municipais, podendo ser diferentes em cada um deles.

Com isso, o Brasil poderá ter 5.598 regimes previdenciários, sendo um da União, 26 dos estados, um do Distrito Federal, e 5.570 dos municípios. Em outras palavras: não haverá mais a exigência de regras mínimas comuns a todos os entes federados.

4. No dia 11 de novembro de 2019, foi baixada — tecnicamente, editada — a Medida Provisória (MP) 905, instituindo o contrato de trabalho “verde amarelo”, que, por seus nefastos dispositivos, enxovalha as cores da bandeira da República, como se verá a seguir.

Seria isso sina, tragédia, castigo dos deuses, ou farsa, frequentemente repetida? 

Essa MP, além de criar o citado contrato de trabalho, aplicável aos jovens de 18 a 29 anos, altera, cria e/ou revoga mais de cem dispositivos da CLT, com o mesmo vil propósito da Lei N. 13.467/2017: a redução e/ou supressão de direitos dos trabalhadores e a criação de instrumento de amparo jurídico ao total desrespeito dos que sobraram. Revoga, também, dispositivos da Lei N. 605/1949, que regulamenta o repouso semanal remunerado, e muitas outras leis.

 

O contrato de trabalho “verde amarelo” nada mais é do que emprego sem direito, cantilena repetida pelo presidente da República desde a campanha de 2018.

Por essa modalidade de contrato, que é por prazo determinado (até 24 meses), aplicável a jovens de 18 a 29 anos, com salário-base de até 1,5 salário-mínimo, em atividade-fim e atividade-meio (vedado apenas em atividades especiais), o trabalhador submete-se a:

I jornada de dez horas, por simples “acordo individual”;

II compensação de horas extras, mediante “acordo individual” tácito ou escrito;

III banco de horas, por “acordo individual” escrito.

IV FGTS com percentual de apenas 2% ao mês e multa reduzida por metade (20%);

V adicional de periculosidade reduzido a 5% (o normal é de 30%), se “acordo individual”escrito prever a contratação de “Seguro por exposição a perigo previsto em lei”;

VI repouso semanal remunerado coincidindo com domingo a cada quatro semanas no comércio e no setor de serviços, e a cada sete semanas no setor industrial. A CF, no Art. 7º, inciso XV, o assegura a todos, preferencialmente aos domingos (ou seja, a maioria dos dias de repouso deveria recair aos domingos);

VII rescisão antecipada de contrato, sem direito à indenização prevista no Art. 479 da CLT, que assegura o direito à metade dos salários pelo tempo restante;

VIII prevalência dos termos dessa MP sobre outras normas legais e/ou convencionais, mesmo que lhe sejam mais vantajosas;

VIII contribuição previdenciária sobre o seguro-desemprego, caso faça jus a ele.

Em contrapartida, as empresas que adotarem o contrato “verde amarelo” terão os seguintes “incentivos”:

I o direito de manter até 20% do seu quadro nessa modalidade;

II o direito de contratar, por essa modalidade, quem dela se desligou há mais de 180 dias, ainda que o contrato anterior tivesse outra natureza;

III a isenção da quota patronal de contribuição previdenciária, correspondente a 20% da folha de pagamento;

IV a isenção das contribuições sociais devidas ao sistema “S”;

V a redução do FGTS de 8% para 2%, e da multa rescisória de 40% para 20%;

VI o direito de exigir jornada de dez horas, bastando para tanto “acordo individual”, sem a exigência de que seja escrito;

VII a desobrigação de pagar horas extras, por simples “acordo individual”, tácito ou escrito, para a compensação de horas, e “acordo individual” escrito, para banco de horas;

VIII a redução do adicional de 30% para 5% em atividades periculosas se, por “acordo individual” escrito, contratar seguro privado;

IX a faculdade de comprovar, perante a Justiça do Trabalho, acordo extrajudicial de reconhecimento de cumprimento das suas obrigações trabalhistas para com o trabalhador, com base no Art. 855-B da CLT, o que impedirá o trabalhador de cobrar-lhe qualquer direito, porventura descumprido;

X o direito de descumprir a CLT, convenções e acordos coletivos que disponham de modo diverso dessa MP.

Como se não bastassem os descalabros acima enumerados, a MP pratica outras atrocidades contra os trabalhadores: 

I penaliza todos os beneficiários do seguro-desemprego com a cobrança de contribuição previdenciária incidente sobre as suas parcelas; nesse caso, tempo de seguro-desemprego será considerado como tempo de contribuição à previdência social;

II aumenta de seis para oito horas a jornada dos bancários que não operam exclusivamente em caixas e autoriza a elevação da jornada destes, por “acordo individual” escrito;

III reduz os juros de mora dos débitos trabalhistas de 1% ao mês para o percentual da poupança, hoje de 0,5%. 

A CF, no Art. 1º, Parágrafo único, assevera que “Todo o poder emana do povo”. Já a MP 905, sob comentários, determina: “Todo o poder emana do capital e só a ele serve”.

Essa MP é tão nefasta que recebeu nada mais, nada menos que 1.930 emendas.

5. A PEC 188/2019, apresentada ao Senado Federal ao início de novembro, vai muito além de todas as medidas antirrepublicanas adotadas, até aqui. Condiciona a garantia de direitos e o cumprimento de decisões judiciais à existência de dotação orçamentária.

Não existindo tal dotação, o Poder Público ficará desobrigado do cumprimento de seu dever maior que é o de garantir a implementação de políticas públicas de investimento social na educação, saúde, previdência e assistência social, segurança, trabalho etc.

Ademais, consagra o Poder Público como insubmisso às decisões judiciais e como caloteiro mor e, de forma surreal, autoriza desvio de verbas da saúde para cobrir gastos com a educação, e vice-versa.

Para que se tenha noção do crime de lesa República que essa PEC pretende legalizar, transcrevem-se, aqui, alguns de seus dispositivos mais escabrosos.  

 

“Art.6° […]

Parágrafo único. Será observado, na promoção dos direitos sociais, o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional.” (NR)

“Art. 167 […]

§ 8° Lei ou ato que implique despesa somente produzirá efeitos enquanto houver a respectiva e suficiente dotação orçamentária, não gerando obrigação de pagamento futuro por parte do erário.

§ 9° Decisões judiciais que impliquem despesa em decorrência de obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa somente serão cumpridas quando houver a respectiva e suficiente dotação orçamentária.”

“Art. 198 […]

§ 7° Para fins de cumprimento do disposto no §2°, fica autorizada, na elaboração da proposta orçamentária e na respectiva execução, a dedução do montante aplicado na manutenção e desenvolvimento do ensino que exceder o mínimo aplicável nos termos do art. 212, caput, desta Constituição.” (NR)

“Art. 212 […]

§ 7° Para fins de cumprimento do disposto no caput, fica autorizada, na elaboração da proposta orçamentária e na respectiva execução, a dedução do montante aplicado em ações e serviços públicos de saúde que exceder o mínimo aplicável, nos termos do art. 198, § 2°, desta Constituição.” (NR)

Há um velho provérbio judeu que diz equivaler-se a um ano um dia feliz. Ainda que se mantenha essa mesma proporção para os dias infelizes, é forçoso dizer que os 365 dias iniciais do governo Bolsonaro equivalem a 365 anos de infelicidade e retrocesso.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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