TRT de Goiás reverte justa causa imposta ao professor Jeová Canheta e defende a liberdade de cátedra

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

Em meio a tantas decisões retrógradas que se emanam da Justiça do Trabalho, nos últimos tempos, eis que o TRT da 18ª Região, Goiás, profere uma alentadora, no processo 0010141-73.2024.5.18.0014, patrocinado pelo Sinpro Goiás, tendo como advogado do professor reclamante Alexandre Amui, Assessor Jurídico da Entidade, confirmando a sentença que reverteu a justa causa ilegal e absurdamente aplicada àquele, pela instituição de ensino da qual era empregado, por ter cometido a “falta grave” de valer-se do princípio constitucional da liberdade de ensinar (liberdade de cátedra), assegurado no Art. 206, III, da Constituição Federal (CF), em suas aulas de História.

A Ementa do Acórdão, que julgou improcedente o recurso ordinário (RO) da instituição de ensino, relatado pelo desembargador Marcelo Pedra, com voto aprovado pelos demais componentes da Terceira Turma, destaca:

“EMENTA DISPENSA POR JUSTA CAUSA. PROFESSOR. MANIFESTAÇÃO POLÍTICO-IDEOLÓGICA EM AULA. LIBERDADE DE CÁTEDRA. ARTIGOS 205 E 206, II E III DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ART. 3º, II E IV DA LEI 9.394/96 (DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO). NULIDADE. A aplicação da pena de dispensa por justa causa a professor, em razão de opinião político-ideológica manifestado em sala de aula, se afigura discriminatória, violando a liberdade de cátedra. A autonomia docente é elemento integrante da atividade do professor, mormente no ensino de disciplina inserida no ramo das Ciências Humanas, sendo requisito para o desenvolvimento da consciência crítica, atendendo ao que preceitua a norma do art. 205 da Constituição Federal: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” A imposição de limites à abordagem de temas políticos e históricos em sala de aula, quando inerentes ao contexto da disciplina ministrada, contraria igualmente os princípios elencados nos incisos II – “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” e III – “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino”, do artigo 206 da Constituição Federal – princípios estes replicados pela legislação infraconstitucional, como se verifica do teor dos incisos II e IV do art 3º da Lei 9.394/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. No caso em apreço a ausência de procedimento interno de averiguação por parte da empregadora e a aplicação de dupla penalidade ao trabalhador reforçam o caráter arbitrário da punição, impondo-se a declaração de sua nulidade”.

Em seu voto, acolhido à unanimidade pela 3ª Turma do TRT 18, relator assevera: “ao acatar críticas de alguns pais, impôs que o reclamante lecionasse sem a autonomia necessária para tanto, e, quando o reclamante recusou abrir mão de sua liberdade de cátedra, a ré o dispensou por justa causa, o que não pode ser admitido”. [..]”sem que o contexto político recente do país pudesse ser discutido em sala de aula, e sem que pudesse expor proposições legislativas violadoras da liberdade de expressão, tal como o movimento Escola sem Partido”.[..] “foi dispensado por justa causa em razão de não ministrar suas aulas de história com neutralidade, quando é consabido que o senso crítico é intrínseco à função de lecionar”.

Essa justa causa que, para o bem da democracia, não prosperou, é o símbolo marcante dos retrocessos político-ideológicos implantados com a ascensão do fascismo ao poder, em 2018, com a eleição de Bolsonaro, ainda não suplantados, em razão da força que a extrema-direita têm no Congresso Nacional e nos parlamentos estaduais e municipais.

O controle ideológico aplicado ao reclamante do referenciado processo é filho primogênito da famigerada escola sem partido, já rechaçada com veemência pelo STF, na ação direta de inconstitucionalidade (ADI)-5537, de autoria da Contee, na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 548, na qual a Contee atuou como amicus curiae. Bem assim, em dezenas de outras decisões.

Diante da gravidade que esse controle ideológico representa e provoca, transcrevem-se, aqui, as ementas dos acórdãos das duas primeiras decisões do STF, em casos que tais.

ADI 5537

EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROGRAMA ESCOLA LIVRE. LEI ESTADUAL. VÍCIOS FORMAIS (DE COMPETÊNCIA E DE INICIATIVA) E AFRONTA AO PLURALISMO DE IDEIAS. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE . I. Vícios formais da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas: 1. Violação à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF, art. 22, XXIV): a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias são princípios e diretrizes do sistema (CF, art. 206, II e III); 2. Afronta a dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação: usurpação da competência da União para estabelecer normas gerais sobre o tema (CF, art. 24, IX e § 1º); 3. Violação à competência privativa da União para legislar sobre direito civil (CF, art. 22, I): a lei impugnada prevê normas contratuais a serem observadas pelas escolas confessionais; 4. Violação à iniciativa privativa do Chefe do Executivo para deflagrar o processo legislativo (CF, art. 61, § 1º, “c” e “e”, ao art. 63, I): não é possível, mediante projeto de lei de iniciativa parlamentar, promover a alteração do regime jurídico aplicável aos professores da rede escolar pública, a alteração de atribuições de órgão do Poder Executivo e prever obrigação de oferta de curso que implica aumento de gastos. II. Inconstitucionalidades materiais da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas: 5. Violação do direito à educação com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a Constituição. Supressão de domínios inteiros do saber do universo escolar. Incompatibilidade entre o suposto dever de neutralidade, previsto na lei, e os princípios constitucionais da liberdade de ensinar, de aprender e do pluralismo de ideias (CF/1988, arts. 205, 206 e 214). 6. Vedações genéricas de conduta que, a pretexto de evitarem a doutrinação de alunos, podem gerar a perseguição de professores que não compartilhem das visões dominantes. Risco de aplicação seletiva da lei, para fins persecutórios. Violação ao princípio da proporcionalidade (CF/1988, art. 5º, LIV, c/c art. 1º). 7. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.

ADPF 548

EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ELEIÇÕES 2018: MANIFESTAÇÕES EM INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR. ATOS DO PODER PÚBLICO: BUSCAS E APREENSÕES. ALEGADO DESCUMPRIMENTO A PRECEITOS FUNDAMENTAIS: PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DEMONSTRADA. URGÊNCIA QUALIFICADA CONFIGURADA. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA E REFERENDADA. 1. Adequada a utilização da arguição de descumprimento de preceito fundamental porque respeitado o princípio da subsidiariedade e processualmente viável a impugnação, por seu intermédio, de decisões judiciais ou de interpretações judiciais de textos normativos constitucionais. 2. Suspensos os efeitos de atos judiciais ou administrativos, emanados de autoridade pública que possibilitem, pelos quais se determinem ou promovam o ingresso de agentes públicos em universidades públicas e privadas, o recolhimento de documentos, a interrupção de aulas, debates ou manifestações de docentes e discentes universitários, a atividade disciplinar docente e discente e a coleta irregular de depoimentos desses cidadãos pela prática de manifestação livre de ideias e divulgação do pensamento nos ambientes universitários. 3. Pluralismo não é unanimidade, impedir a manifestação do diferente e à livre manifestação de todas as formas de apreender, aprender e manifestar a sua compreensão de mundo é algemar as liberdades, destruir o direito e exterminar a democracia. 4. O pluralismo de ideias está na base da autonomia universitária como extensão do princípio fundante da democracia brasileira, que é exposta no inc. V do art. 1º da Constituição da República”.

Não obstante a CF e o STF coibirem tal prática nefasta ao Estado Democrático de Direito, esteio maior da República Federativa do Brasil, a extrema direita passa ao largo desses comandos, não se cansando de atentar contra a liberdade de expressão e de ensinar e aprender.

Matéria publicada no portal NDD+, aos 27 de fevereiro de 2025, assinada por Geovani Martins, denuncia projeto de lei (PL) em tramitação na Assembleia Legislativa de  Santa Catarina, que tem se esmerado para ser a mais retrógrado do Brasil, visa a impor a “neutralidade política”.

Eis a realçada matéria:

“Projeto que obriga professores a fazerem curso de ‘neutralidade política’ avança em SC; entenda

Projeto que prevê formação ética e política para docentes da rede estadual já avançou em duas comissões da Alesc; para sindicato de professores, medida representa um retrocesso na educação

Geovani Martins, Florianópolis 27/02/2025 às 21h58

‘Neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado’ é um dos princípios do projeto de lei 0216/2024, da deputada Ana Campagnolo (PL), que já avançou em duas comissões na Alesc (Assembleia Legislativa de Santa Catarina). A proposta prevê que os professores da rede estadual catarinense passem por uma formação semestral envolvendo o Código de Ética Docente estabelecido no projeto”.

Que tempos sombrios, os de agora!

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

Conheça a história do professor Jeová Araújo Canheta que embasou o artigo!

O professor Jeová Araújo Canheta foi contratado como professor da disciplina de História no dia 01/03/2005 pelo Colégio Dinâmico e dispensado, por justa causa em razão de ato de insubordinação no dia 7/12/2023. Todavia, como sua dispensa teve natureza discriminatória e amparada por motivação política, foi requerido em ação judicial a conversão da resolução contratual por justa causa para resilição contratual sem justa causa, indenização por danos morais e materiais em razão de ato discriminatório e diferenças salariais em razão da redução ilícita de jornada nos últimos anos do contrato, em especial após o início dos imbróglios políticos.

No mês de março de 2023 o professor de história abordava tema sobre política em sala de aula (previsto no cronograma do curso) e, em razão de uma publicação num site de notícias local (Mais Goiás), fez um comentário sobre um evento organizado em Brasília para ser realizado na Câmara dos Deputados com o tema “A doutrinação ideológica em sala de aula”, analisando o projeto amparado na sua liberdade de ensinar e abordando que o Supremo Tribunal Federal já havia decidido por diversas vezes sobre o tema “escola sem partido”.

Alguns alunos, que não conseguem compreender a importância da discussão sobre a história política do Brasil e do mundo para a formação intelectual deles, enviaram reclamação ao Deputado Federal Gustavo Gayer que, em razão da sua rotina política em mídias sociais, resolveu marcar o colégio e o professor e atacá-lo. Isso ensejou perseguição ao professor em suas redes sociais e na escola, que novamente lhe aplicou uma advertência escrita.

Em dezembro de 2023, ainda amparada na questão ocorrida em março de 2023, a Reclamada decidiu dispensar o professor por justa causa, em razão de prática de indisciplina e insubordinação ao “discutir tese de cunho político dentro de sala de aula e não completando o conteúdo programado”, nos termos do artigo 482, h, da CLT.

Por entender que há provas robustas de que o professor concluiu todo o cronograma estabelecido para a disciplina e que sua função como professor de história é debater assuntos que também envolvem a política, em especial na história do Brasil, o pedido foi julgado parcialmente procedente para reconhecer o ato discriminatório, condenar a empresa ao pagamento em dobro dos salários pelo período do afastamento entre a dispensa e a sentença e, ainda, fixar indenização por danos morais no importe de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), conforme decisão do TRT da 18ª Região que ainda comporta recurso.

O pedido de diferenças salariais pela redução de aulas foi julgado improcedente, pois há provas da redução do número de alunos e turmas.

*História contada pelo Advogado Alexandre Amui

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