STF transforma em mortalha os direitos trabalhistas e sindicais

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

No Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa Michaelis, o verbete sinédrio é registrado como “Conselho supremo dos judeus na Palestina durante o domínio romano, composto de sacerdotes, anciões e escribas da classe dominante, o qual tratava e decidia os assuntos de Estado e de religião”.

O Supremo Tribunal Federal (STF), nos últimos anos, abandonou sua condição de guardião da Constituição Federal (CF) para se converter em sinédrio, interpretando-a conforme as conveniências e interesses econômicos de ocasião. Com isso, suas decisões assumem contornos camaleônicos, mudando de coloração de acordo com as conveniências do momento.

Cada direito social, especialmente de natureza sindical, que bate à sua porta em busca de proteção, via de regra, sai dela em uma mortalha ou transformado em zumbi, como aconteceu com o direito de greve (RE 693456) e com o custeio das entidades sindicais (ADI 5794 e ADC 55). Pouco são os que não saem fraturados ou mortíferos.

No acórdão proferido no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 590415, em 2015, que abriu largos para a prevalência do negociado sobre o legislado, colhem-se os seguintes excertos:

“[…]

3. No âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual.

4. A Constituição de 1988, em seu artigo 7º, XXVI, prestigiou a autonomia coletiva da vontade e a autocomposição dos conflitos trabalhistas, acompanhando a tendência mundial ao crescente reconhecimento dos mecanismos de negociação coletiva, retratada na Convenção n. 98/1949 e na Convenção n. 154/1981 da Organização Internacional do Trabalho. O reconhecimento dos acordos e convenções coletivas permite que os trabalhadores contribuam para a formulação das normas que regerão a sua própria vida”.

O voto condutor desse citado acórdão registra:

“[…]

8. O direito individual do trabalho tem na relação de trabalho, estabelecida entre o empregador e a pessoa física do empregado, o elemento básico a partir do qual constrói os institutos e regras de interpretação. Justamente porque se reconhece, no âmbito das relações individuais, a desigualdade econômica e de poder entre as partes, as normas que regem tais relações são voltadas à tutela do trabalhador.

Entende-se que a situação de inferioridade do empregado compromete o livre exercício da autonomia individual da vontade e que, nesse contexto, regras de origem heterônoma – produzidas pelo Estado – desempenham um papel primordial de defesa da parte hipossuficiente. Também por isso a aplicação do direito rege-se pelo princípio da proteção, optando-se pela norma mais favorável ao trabalhador na interpretação e na solução de antinomias”.

A Medida Provisória (MP) 936, em absoluto desprezo ao que determina o Art. 7º, inciso VI, da CF — irredutibilidade salarial, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo —, autoriza redução salarial por “acordos individuais” para quem recebe até R$ 3.135,00 (três salários mínimos) ou mais de R$ 12.102,12 (mais de duas vezes o teto do regime geral de Previdência Social, que é de R$ 6.101,06) e possua diploma de curso superior. Pois bem!Ao apreciar a cautelar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski na ADI 6363, que questiona a MP em questão, outro foi o entendimento do STF, decidindo, por sete votos a três, de forma diametralmente oposta ao que decidira no citado RE 590415.

Como num passe de mágica, o STF deixou de considerar a relação de trabalho como assimétrica (desigual) para autorizar os tais “acordos individuais” exatamente para os trabalhadores mais desprotegidos, que são os que enquadram na faixa de até três salários mínimos e representam a esmagadora maioria dos que possuem contratos formais.

No voto, que abriu a divergência majoritária, o ministro Alexandre de Moraes afirmou: “Às vezes é importante ceder para sobreviver”. O que o ministro não disse, e não foi por descuido, é que o que se cedia não era apenas o direito à parcela do salário ou a suspensão temporária do contrato; era, é e será sempre o comando constitucional, indelevelmente estampado no Art. 7º, inciso VI, da CF.

O entendimento prevalecente no STF, nesse caso concreto, é o de que a CF somente é válida em período de bonança — parafraseando o ministro Lewandowski, na mencionada cautelar.

Não satisfeitos em fazer tábula rasa do destacado comando constitucional, os ministros que formaram a maioria vencedora escarneceram-se dos sindicatos, a quem procuraram reduzir a rés do chão. Ódio nas relações interpessoais, embora seja indesejável, é esperado. Porém, ódio institucional contra ente sindical, elevado pela CF à condição de responsável pela defesa dos direitos e interesses coletivos e individuais dos integrantes da categoria (Art. 8º, inciso III, da CF), é teratológico.

A tese proposta pelo ministro Roberto Barroso não só é diametralmente oposta àquela que ele propôs no RE 590415, acolhida pelos demais ministros, bem como revela o desprezo que nutre pela organização sindical dos trabalhadores:

“É possível, extraordinariamente, afastar a exigência de negociação coletiva, em situação emergencial e transitória, nas hipóteses previstas na MP 936/2020, tendo em vista que a rigorosa regulação pelo Poder Público minimiza a vulnerabilidade do empregado e que a negociação coletiva poderia frustrar a proteção ao emprego”.

No RE 590415, o ministro Roberto Barroso asseverou:

“10. Não se espera que o empregado, no momento da rescisão de seu contrato, tenha condições de avaliar se as parcelas e valores indicados no termo de rescisão correspondem efetivamente a todas as verbas a que faria jus. Considera-se que a condição de subordinação, a desinformação ou a necessidade podem levá-lo a agir em prejuízo próprio. Por isso, a quitação, no âmbito das relações individuais, produz efeitos limitados. Entretanto, tal assimetria entre empregador e empregados não se coloca — ao menos não com a mesma força — nas relações coletivas.

[…]

15. A transição do modelo corporativo-autoritário, essencialmente heterônomo, para um modelo justrabalhista mais democrático e autônomo tem por marco a Carta de 1988. A Constituição reconheceu as convenções e os acordos coletivos como instrumentos legítimos de prevenção e de autocomposição de conflitos trabalhistas; tornou explícita a possibilidade de utilização desses instrumentos, inclusive para a redução de direitos trabalhistas; atribuiu ao sindicato a representação da categoria; impôs a participação dos sindicatos nas negociações coletivas; e assegurou, em alguma medida, a liberdade sindical, vedando a prévia autorização do Estado para a fundação do sindicato, proibindo a intervenção do Poder Público em tal agremiação, estabelecendo a liberdade de filiação e vedando a dispensa do diretor, do representante sindical ou do candidato a tais cargos. Nota-se, assim, que a Constituição prestigiou a negociação coletiva, bem como a autocomposição dos conflitos trabalhistas, através dos sindicatos.

Confira-se, a seguir, o teor das mencionadas normas constitucionais:

‘Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: […];

VI – irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; ………………………………………………………………………………………… XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; XIV – jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva; …………………………………………………………………………………………. XXVI – reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho’ (grifou-se)”.

Segundo notícia publicada pelo Portal do STF, “Ministra Cármen Lúcia votou por seguir a divergência, não referendando a liminar. A ministra chamou a atenção para os milhares de acordos individuais já firmados e que, submetê-los à avaliação de sindicatos causaria uma enorme insegurança para todas as partes envolvidas”.

No tocante ao voto do ministro Luiz Fux, que parece prezar menos ainda os sindicatos, a referida notícia registra:

“O ministro Luiz Fux votou por não referendar a liminar. Fux falou da importância dos acordos entre trabalhadores e empregadores, ressaltando a importância da concilicação: ‘otimiza os relacionamentos’, disse. Fux enfatizou a necessidade da liberdade dos funcionários. Para o ministro, a comunicação dos acordos aos sindicatos não objetiva que as entidades possam propiciar modificações daquilo que foi combinado. Para ele, isso acarreta ‘severa judicilização, gerando aquilo que a CF promete como ideário da nação, que é a segurança jurídica’”.

O ministro Marco Aurélio chamou de burocracia cartorária a atividade sindical.

Estranhamente, os sete ministros que votaram por não referendar a liminar do ministro Lewandowski não disseram uma palavra sobre a exigência de negociação coletiva para a celebração dos acordos de redução salarial e de suspensão temporária de contrato para quem recebe mais de R$ 3.135,00.

Será que esqueceram? É improvável. Será que, em casos que tais, não há insegurança jurídica nem burocracia cartorária? Isso não disseram.

A ementa da realçada decisão acha-se assim exarada:

“Decisão: O Tribunal, por maioria, negou referendo à medida cautelar, indeferindo-a, nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes, Redator para o acórdão, vencidos o Ministro Ricardo Lewandowski (Relator), que deferia em parte a cautelar, e os Ministros Edson Fachin e Rosa Weber, que a deferiam integralmente. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário, 17.04.2020 (Sessão realizada inteiramente por videoconferência – Resolução 672/2020/STF)”.

Diante dessa surreal decisão, pouco resta a fazer no tocante aos “acordos individuais”. No entanto, não autoriza a inércia sindical; cabe aos sindicatos, em cumprimento ao seu dever constitucional, estipulado no Art. 8º, inciso III, da CF, e para os fins de resguardar e prevenir direitos (Art. 726 do CPC e OJ 392 do TST), notificar as empresas sempre que constatarem abuso de direito e ou qualquer irregularidade nos famigerados “acordos individuais”. Isso apesar de o ministro Luiz Fux afirmar que às entidades sindicais cabe apenas o arquivo de tais “documentos”.

Para além disso, a batalha agora tem de ser travada no Congresso Nacional — de onde nunca deveria ter sido deslocada —, visando a restabelecer o comando constitucional renegado pelo STF.

Ademais, há de se fazer um crucial apelo aos partidos políticos e às confederações, que, em nenhuma hipótese, peçam ao STF para resgatar a CF, pois que ele, sobejamente, já demonstrou que não se dispõe a fazê-lo.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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