Para além da alfabetização: cultura do silêncio e os 50 anos da pedagogia do oprimido

Dentre as muitas razões para celebrar o cinquentenário de 1968 – “o ano que não terminou”, na feliz expressão de Zuenir Ventura – certamente está a conclusão dos manuscritos do livro Pedagogia do Oprimido que Paulo Freire escreveu no exílio chileno e que viria a ser publicado pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1970, e só quatro anos depois no Brasil

Venício A. de Lima
Professor Emérito da UnB e Pesquisador Sênior do CERBRAS-UFMG

Dentre as muitas razões para celebrar o cinquentenário de 1968 – “o ano que não terminou”, na feliz expressão de Zuenir Ventura – certamente está a conclusão dos manuscritos do livro Pedagogia do Oprimido que Paulo Freire escreveu no exílio chileno e que viria a ser publicado pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1970, e só quatro anos depois no Brasil. 

Na carta-dedicatória que fez ao presentear o casal amigo Jacques Chonchol e Maria Edy Ferreira 1 com os manuscritos, na primavera de 1968, Freire escreveu: “queria que vocês recebessem estes manuscritos de um livro que pode não prestar, mas que encarna a profunda crença que tenho nos homens2.

Freire nunca imaginou que, 50 anos depois, o “livro que poderia não prestar” estaria traduzido em mais de 30 idiomas (Araujo Freire 2006; p. 380), estaria em sua 65ª edição no Brasil e seria o único livro brasileiro a constar da lista dos 100 títulos mais indicados por professores nas bibliografias das universidades de língua inglesa (Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia) pesquisadas pelo projeto Open Syllabus (G1, 17/2/2016). 

Por outro lado, não poderia estar mais correto ao afirmar que o livro “encarna a profunda crença que tenho nos homens”, pois esse certamente é o principal e mais universal fio condutor, não só da Pedagogia do Oprimido, mas de toda a sua obra.

Ao definir pedagogia do oprimido, Freire afirma que é “aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará” (Freire, 2018, p. 43) ou ainda “é a pedagogia dos homens empenhando-se na luta por sua libertação” (idem, p. 55). Vale dizer: ter consciência da opressão não basta, não é suficiente. Como diz Freire: “reconhecerem-se limitados pela situação concreta de opressão (…) não significa ainda sua libertação (…) somente superam a contradição em que se acham quando o reconhecerem-se oprimidos os engaja na luta por libertar-se” (idem, pp. 48-49). 

Desta forma, deslocar o foco da educação (ou da ação cultural) do educador para o educando e argumentar que “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (ibidem, p. 96), parece ser a marca registrada do pensamento freireano. 

Faço apenas esse registro sumário do que me parece ser a chave básica da Pedagogia do Oprimido e remeto o leitor ou a leitora interessadas também à Pedagogia da Esperança – Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido, que Freire escreveu 24 anos depois. Nela ele narra as circunstâncias e desafios, sobretudo no Brasil e no Chile, que o levaram a escrever a Pedagogia do Oprimido, além de responder a críticas e reafirmar posições. Ademais, não sendo pedagogo, pretendo salientar outro aspecto neste breve ensaio.

Uma distorção recorrente

Com o sugestivo título de “Os Múltiplos Paulo Freire”, texto da pedagoga equatoriana Rosa Maria Torres, publicado há quase 20 anos, lembrava que “seguidores e críticos frequentemente coincidiram em reduzir [Paulo Freire] a uma caricatura de si mesmo, enquadrando seu pensamento em uma única área (em geral, a alfabetização de adultos) e restringindo-o a uma série de clichês e mesmo a um método” (Torres, 2001, p. 232).

O próprio Freire, em diversas ocasiões, manifestou seu descontentamento com esse fato. Em entrevista pouco conhecida que concedeu à jornalista Maria do Rosário Caetano, ainda em 1982, apesar de reconhecer que alguns “críticos ou não, têm percebido [a] amplitude de visão que venho propondo”, ele lamentava que: 

Durante muito tempo fui visto como um especialista em educação de adultos, um bom técnico, o autor de um método eficiente. Mas acho que desde meus primeiros estudos, mesmo com ingenuidade, já explicitava uma visão maior da alfabetização. E isto está presente na minha própria compreensão da alfabetização como um ato criador”. (…) E foi partindo desta compreensão crítica, que fui me desdobrando para compreender uma totalidade, para perceber a politicidade, a educabilidade do processo político. Se isto não está claro em meu primeiro livro, em Pedagogia do Oprimido esta percepção se faz bem presente. E se faz clara também na minha prática e na teoria da minha prática” (Caetano, 1982).

Decorridos todos esses anos, é intrigante que nos eventos sendo realizados para celebrar os 50 anos da Pedagogia do Oprimido – no Brasil e no exterior – praticamente só existam participantes pedagogos, educadores populares, filósofos da educação ou especialistas que, mesmo eventualmente oriundos de outros campos de estudo, trabalham com o pensamento de Paulo Freire da perspectiva da educação formal3.

A ocasião me parece propícia, portanto, para que esta distorção recorrente seja registrada em memória do pensamento de Freire.

Para além da alfabetização

Embora Freire tenha continuado a produzir ativamente depois de 1968 até a sua morte repentina em 1997 – ao longo, portanto, de quase 30 anos – Pedagogia do Oprimido é certamente sua obra maior e talvez constitua o melhor exemplo do erro que se comete ao se distorcer e/ou se reduzir seu pensamento apenas a uma proposta de alfabetização de adultos.  

Na verdade, embora Pedagogia do Oprimido seja um livro, sobretudo, calcado nas circunstâncias históricas da América Latina da segunda metade da década de 60 do século passado4, a obra preserva sua universalidade e sua atualidade exatamente porque abarca diferentes áreas do conhecimento e atrai estudiosos e profissionais que incluem desde teólogos e filósofos até médicos e terapeutas, passando, é claro, por pedagogos e estudiosos da comunicação social, como é meu caso.

No final da década de 70, ainda não eram muitos os estudos sobre o pensamento de Freire, mas começava a aparecer, sobretudo no exterior, dissertações e teses na filosofia, na sociologia, no serviço social, nos estudos de religião e na história5. Creio ter sido um dos primeiros a pesquisar sua obra em busca de eventual contribuição ao campo da comunicação e da cultura (Lima, 2015a). Desde então, vale dizer, ao longo dos últimos 40 anos, continuo redescobrindo um Paulo Freire republicano, que vai muito além do criador de um método de alfabetização de adultos (Lima 2015b). 

Nestes tristes tempos neoliberais, quando se tenta substituir a soberania popular pela soberania do “mercado”, um bom exemplo da amplitude do pensamento freireano é a potencialidade analítica do conceito de cultura do silêncio e do seu corolário, políticas de silenciamento. Para Freire, a cultura do silêncio corresponde a um conjunto de representações e comportamentos ou de “formas de ser, pensar e expressar” que é consequência de uma estrutura de dominação secular na América Latina, espanhola e portuguesa, mas se manifesta também nos países considerados de Primeiro Mundo. Embora de forma desigual, ela condiciona tanto opressores como oprimidos. A cultura do silêncio é uma dimensão da educação “bancária”, ambiente do tolhimento da voz e da ausência de comunicação, da incomunicabilidade. Caracteriza, portanto, a sociedade à qual se nega a comunicação e o diálogo e em seu lugar se oferecem comunicados (cf. Lima, 2017).

Gostaria, portanto, de celebrar os 50 anos da Pedagogia do Oprimido fazendo sua releitura na perspectiva da presença do seminal conceito de cultura do silêncio e da busca de sua possível aplicação no tempo presente. 

cultura do silêncio na Pedagogia do Oprimido

Apesar de inúmeras passagens onde se vincula a condição de oprimido à ausência de voz e à impossibilidade de “dizer a palavra” (cf. [Freire, 2018] pp. 48, 50, 108, 113, 136 e 177), só há três referências explícitas ao conceito de cultura do silêncio na Pedagogia do Oprimido

De certa forma essa pouca presença é compreensível uma vez que a consolidação do conceito no pensamento de Freire ocorre paralelamente à escrita da Pedagogia do Oprimido (1968), no Chile, e sua explicitação mais detalhada vai surgir em texto posterior escrito quando Freire já estava professor convidado da Universidade de Harvard (1969), nos Estados Unidos6.

Onde e em que circunstâncias aparece o conceito de cultura do silêncio na Pedagogia do Oprimido?

(1) A primeira referência é quando Freire discute “a situação concreta de opressão e os opressores”, ainda no capítulo 1 (cf. [Freire, 2018], pp. 61-67)7.  Ao tratar da “adesão e consequente passagem que fazem representantes do polo opressor ao polo dos oprimidos” (idem, p. 65) – aos quais tem cabido um papel fundamental na luta pela libertação – Freire argumenta que quando esta passagem ocorre, condicionados pela cultura do silêncio, na maioria das vezes, os “convertidos” 8trazem consigo preconceitos, deformações, desconfianças e uma profunda descrença na capacidade dos oprimidos de se tornarem sujeitos de sua própria História.

Revela-se aqui um aspecto sempre esquecido em relação à cultura do silêncio, isto é, o fato de que ela condiciona não só o comportamento dos oprimidos – que nela nascem imersos e nela são mantidos por uma estrutura social secular de submissão e por políticas de silenciamento –, mas condiciona também os opressores que, socializados na “cultura da dominação” (cf. idem, p. 57), internalizam a percepção de sua superioridade inata e da ignorância incontornável dos oprimidos.

Para aqueles que estudam a mídia brasileira é impossível não evocar aqui o depoimento do professor Laurindo Leal Filho da USP, quando, junto a outros oito docentes convidados de diferentes cursos de jornalismo, visitavam a Rede Globo para conhecer o funcionamento do Jornal Nacional e instalações da empresa no Rio de Janeiro. O grupo tomou conhecimento perplexo e diante de indisfarçável mal-estar, que o editor-chefe do mais importante noticiário da TV brasileira usava como critério de seleção de notícias a referência ao personagem Homer Simpson, identificado com o telespectador padrão do Jornal Nacional. Descreve o professor Laurindo: 

A conversa com o apresentador, que é também editor-chefe do jornal, começa um pouco antes da reunião de pauta (…). E sua primeira informação viria a se tornar referência para todas as conversas seguintes. Depois de um simpático ‘bom-dia’, Bonner informa sobre uma pesquisa realizada pela Globo que identificou o perfil do telespectador médio do Jornal Nacional. Constatou-se que ele tem muita dificuldade para entender notícias complexas e pouca familiaridade com siglas como BNDES, por exemplo. Na redação, foi apelidado de Homer Simpson. Trata-se do simpático mas obtuso personagem dos Simpsons, uma das séries estadunidenses de maior sucesso na televisão em todo o mundo. Pai da família Simpson, Homer adora ficar no sofá, comendo rosquinhas e bebendo cerveja. É preguiçoso e o raciocínio lento. A explicação inicial seria mais do que necessária. Daí para a frente o nome mais citado pelo editor-chefe do Jornal Nacional é o do senhor Simpson. ‘Essa o Homer não vai entender’, diz Bonner, com convicção, antes de rifar uma reportagem que, segundo ele, o telespectador brasileiro médio não compreenderia” (Leal Filho, 2015).

Por óbvio, não estamos tratando aqui de um “convertido”, mas o exemplo é emblemático do condicionamento que a cultura do silêncio opera nos opressores e dos preconceitos, deformações, desconfianças e da profunda descrença que carregam em relação aos oprimidos. Desnecessário lembrar as consequências da adoção desse “modelo” de edição de notícias para a perpetuação de uma cultura do silêncio no cotidiano de boa parte da população brasileira, telespectadores do Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão.

(2) A segunda referência à cultura do silêncio aparece no Capítulo 2 quando Freire descreve as concepções “bancária” e problematizadora da educação. Aqui ele argumenta ser a cultura do silêncio uma dimensão da educação “bancária” que ajuda a perpetuar a contradição educador-educandos impedindo que ela seja superada para que se façam ambos educadores e educandos (Freire, 2018, p. 82).

Na verdade, o conceito de educação bancária se assemelha à “comunicação de massa” – oligopolizada, unidirecional e não-dialógica –, onde poucos falam e muitos escutam.  Freire diz que ela “se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador, o depositante. Em lugar de comunicar-se, o educador faz ‘comunicados’ e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem”. E prossegue, “a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guarda-los e arquivá-los” (idem, pp. 80-81).

Não é assim que funciona a “comunicação de massa”, sobretudo em sistemas privados oligopolizados, sem pluralidade ou diversidade, onde uns poucos “sabem” e tem voz e muitos apenas escutam, se acomodam e são transformados em meros objetos? 

Não é assim que funciona quando uns poucos grupos de mídia detém o poder de construir a agenda pública (escolher o conteúdo) e de controlar pela distorção, pela omissão ou pela saliência a formação da opinião chamada pública?

Quando discute a primeira das quatro características da teoria da ação antidialógica – a conquista – (idem, pp. 186-190) Freire argumenta que na ação da conquista “não (é) possível apresentar o mundo como problema, mas, pelo contrário, como algo dado, como algo estático, a que os homens se devem ajustar” (idem, p. 187). A necessária “aproximação” dos opressores aos oprimidos “não pode ser feita pela comunicação, se faz pelos ‘comunicados’, pelos ‘depósitos’ dos mitos indispensáveis à manutenção do status quo” (idem, p. 188). E quais seriam estes mitos? 

Freire lista uma série, dentre eles o mito de que a ordem opressora é uma ordem de liberdade; de que esta ordem respeita os direitos da pessoa humana; de que todos, bastando não ser preguiçosos, podem chegar a ser empresários; de que o homem que vende, pelas ruas, gritando: ‘doce de banana e goiaba’ é um empresário tal qual o dono de uma grande fábrica; o mito do direito de todos à educação; o mito da igualdade de classe; do heroísmo das classes opressoras, de sua caridade, de sua generosidade; da falsa ajuda; o mito de que as elites dominadoras são as promotoras do povo; o mito de que a rebelião do povo é um pecado contra Deus; o mito da propriedade privada como fundamento do desenvolvimento da pessoa humana, o mito da operosidade dos opressores e o da preguiça e desonestidade dos oprimidos; o mito da inferioridade ‘ontológica’ destes e da superioridade daqueles (idem, pp. 188-189).

E como estes mitos são levados até os oprimidos? A resposta a esta pergunta é explicita:  

“Todos estes mitos e mais outros que o leitor poderá acrescentar, cuja introjeção pelas massas populares oprimidas é básica para a sua conquista, são levados a elas pela propaganda bem organizada, pelos slogans, cujos veículos são sempre os chamados ‘meios de comunicação com as massas’. Como se o depósito deste conteúdo alienante nelas fosse realmente comunicação”(idem, p. 189).

Neste sentido, pode-se afirmar que a cultura do silêncio é uma dimensão da educação bancária não só pela atuação desta na estrutura formal de ensino, vale dizer, nas escolas mas, sobretudo, pela atuação capilar, insidiosa e cotidiana dos grupos oligopolistas de mídia, os grandes “educadores coletivos” que – operando como educadores bancários – são instrumento fundamental para a sua reprodução e manutenção. 

Citando Simone de Beauvoir, Freire afirma: “o que pretendem os opressores ‘é transformar a mentalidade dos oprimidos e não a situação que os oprime’, e isto para que, melhor adaptando-os a esta situação, melhor os dominem” (idem, p.84).

(3) A terceira e última menção à cultura do silêncio na Pedagogia do Oprimido está no capítulo 4º quando Freire discute a necessidade de união dos oprimidos, como uma das características da teoria da ação dialógica (“Unir para a libertação”, [Freire, 2018], pp. 234-240).

Reconhecendo que a união dos oprimidos implica também adquirir “consciência de classe”, Freire adverte, no entanto, que a “aderência” deles à realidade da opressão é tamanha que exige que a consciência de classe oprimida “passe, senão antes, pelo menos concomitantemente” pela consciência de homem (ou mulher) oprimido. 

A referência histórica imediata de Freire nesta passagem são os camponeses latino-americanos com os quais trabalhou diretamente no Brasil e no Chile dos anos 60 do século passado. 

Neste contexto, a cultura do silêncio “que se gera na estrutura opressora, dentro da qual e sob cuja força condicionante (os oprimidos) vêm realizando sua experiência de ‘quase-coisas’”, é a responsável direta pela constituição dos oprimidos “aderidos à natureza e à figura do opressor”. Daí porque é necessário que se reconheçam como seres transformadores da realidade por meio de seu trabalho criador e descubram que, como homens, “já não podem continuar sendo ‘quase-coisas’ possuídas e, da consciência de si como homens oprimidos, (passarão) à consciência de classe oprimida” (idem, p. 238).

É interessante observar, como a aderência ao opressor por parte dos oprimidos ocorre e se reproduz também em espaços urbanos de pobreza em países do chamado Primeiro Mundo. 

Relatando a experiência de “invasão cultural” em uma região pobre de Nova Iorque, Freire comenta a “fuga da realidade” em relação à sua própria situação de opressão – que ofende e até ameaça –, por parte de participantes de um trabalho educativo problematizador. Aqui a cultura do silêncio se disfarça em “cultura do êxito e do sucesso pessoal”. Descreve ele:

“Ao problematizar uma situação codificada a um dos grupos das áreas pobres de Nova York (sic) que mostrava, na esquina de uma rua – a rua mesma em que se fazia a reunião –, uma grande quantidade de lixo, disse imediatamente um dos participantes: ‘Vejo uma rua da África ou da América Latina’. ‘E por que não de Nova York? (sic), perguntou a educadora. ‘Porque, afirmou, somos os Estados Unidos e aqui não pode haver isso” (idem, p. 212)9.

Comenta, então, Freire: “Submetidos ao condicionamento de uma cultura do êxito e do sucesso pessoal, reconhecer-se numa situação objetiva desfavorável para uma consciência alienada é frear a própria possibilidade de êxito” (idem, p. 212).

Observações finais

Nossa releitura da Pedagogia do Oprimido revela como a cultura do silêncio: (1) opera de forma dual, embora diferenciada, condicionando tanto o opressor, como o oprimido; (2) constitui-se como uma dimensão da educação “bancária” que se assemelha aos meios de comunicação de massa – “educadores coletivos” –  fazedores de “comunicados” (e não comunicação) e “depósitos” de mitos indispensáveis à manutenção do status quo; e (3) opera tanto nos ambientes rurais dos camponeses-oprimidos do Terceiro Mundo, como nos ambientes da periferia urbana dos pobres-oprimidos do Primeiro Mundo.

O que se pretendeu celebrando os 50 anos da Pedagogia do Oprimido, não foi, por óbvio, diminuir a relevância extraordinária de Paulo Freire para os estudos pedagógicos e, especificamente, para a alfabetização de adultos. Ao contrário, como o próprio Freire reivindicava, trata-se de reiterar a amplitude de seu pensamento e de sua contribuição para outros campos do conhecimento, em particular, para os estudos da comunicação e da cultura. 

Certamente existem ainda na Pedagogia do Oprimido outros aspectos que podem ser explorados e compor um quadro conceitual que possibilite a articulação de um paradigma teórico para a comunicação libertadora ou emancipatória, da mesma forma que se articula e se pratica uma pedagogia libertadora freireana. 

Este é um desafio que continua em aberto e deveria estimular a todos e todas comprometidas com os princípios e valores que nortearam o pensamento e a prática de Paulo Freire ao longo de toda a sua vida.

Nota sobre omissão e bibliografia na Pedagogia do Oprimido

1-Nas edições brasileiras do Pedagogia do Oprimido nunca se publicou – e nem a Editora Paz e Terra ofereceu qualquer explicação sobre o fato – um quadro comparativo entre as teorias da “ação revolucionária” e da “ação repressora” (figura abaixo) que, nos manuscritos originais, aparece como nota de rodapé na parte introdutória do capitulo 4º (p. IV, 15) e que corresponde à nota de rodapé número 98, na 65ª edição em português (Freire, 2018). 

O quadro foi publicado na 1ª. edição do livro em inglês (Freire, 1970), como parte da nota de rodapé número 10, do capitulo 4º, pp. 130-131.

2-Ao discutir a constituição de “lideranças revolucionárias”, Freire cita, como exemplo, o padre colombiano Camilo Torres (1929-1966) e transcreve uma frase sobre ele escrita por “Germano Gusman”.

Nos manuscritos originais não há referência à origem da frase (cf. IV, p. 56). Na 1ª. edição em inglês, a frase aparece como sendo do livro “Camilo – El Cura Guerrillero, Bogotá, 1967” (cf. [Freire, 1970], nota de rodapé número, 38, p. 162). Nas edições em português esta origem é mantida, acrescida do nome da editora: “Servicios Especiales de Prensa” (cf. [Freire, 2018], nota de rodapé número 121, p. 220).

Na verdade, o livro de autoria do Monsenhor Gérman Guzman, publicado pelos Servicios Especiales de Prensa, Bogotá, em 1967, tem como título “Camilo: presencia y destino” e não “Camilo – El Cura Guerrillero”. Todavia, outro livro de Gérmam Guzman – “El Padre Camilo Torres: El hombre e sus obras” – foi publicado pela Siglo Veintiuno, México, em 1968 e esta segunda obra teve uma tradução para o francês, ainda em 1968 (Castermam, Paris), com o título “Camilo Torres, Le curé guérillero”. 

Já em 1977 saiu outro livro, este de Walter Joseph Broderick, publicado pela Editora Grijaldo, Barcelona, com o título “Camilo Torres, el cura guerrillero”. 

De qual livro afinal terá saído a frase de Guzman citada por Freire?

3-Freire cita três vezes uma frase que aparece no famoso manifesto precursor da Teologia da Libertação, encabeçado por Dom Helder Câmara, “15 obispos hablan em prol del Tercer Mundo”, divulgado em 15 de agosto de 1967. 

Nos manuscritos originais a frase é atribuída ao “bispo Franic Split” (p. IV, 26), “Dom Franic” (idem), “bispo Split” (p. IV, 28) e novamente “bispo Split” (p. IV, 90). Na 1ª. edição publicada em inglês (Freire, 1970), a identificação do bispo obedece aos manuscritos e aparece como “Bishop Franic Split” (p. 139) e “Bishop Split” (p. 141). Da mesma forma, nas edições em português (cf. Freire [2018], p. 193, nota de rodapé número 107, p. 195 e p. 251).

Trata-se, na verdade, do Bispo Frank Franic, da cidade de Split, antiga Iugoslávia, desde 1991, Croácia. 

NOTAS

1 Jacques Chonchol, agrônomo chileno, foi presidente do Instituto de Desarrollo Agropecuário, INDAP, onde teve Freire como assessor, assim que este chegou exilado ao Chile. Depois foi ministro da Agricultura do governo Allende (1970-1972). Maria Edy Ferreira, sua esposa, socióloga brasileira, foi pesquisadora no Instituto de Capacitacion e Investigacion em Reforma Agrária, ICIRA, onde Freire também trabalhou.

2 Agradeço à jornalista Janaína Abreu do Instituto Paulo Freire, que possibilitou meu acesso à versão digitalizada do fac símile dos manuscritos da Pedagogia do Oprimido.

3 Refiro-me à sessão “Radical Dreams and Transfomative Praxis: Celebrating 50 Years of Paulo Freire’s Pedagogy of the Oppressed”, realizada no Annual Meeting da American Educational Research Association (AERA), Nova Iorque, em 14 de abril pp.; ao Seminário “50 anos da Pedagogia do Oprimido: uma homenagem a Paulo Freire”, realizado na PUC-MG, em 2 de maio pp.; e ao “II Congresso Internacional Paulo Freire: O Legado Global”, realizado na UFMG entre 28 de abril e 1º de maio pp.

4 Ver o depoimento do próprio Freire no que ele chama de primeiro e segundo “momentos” da Pedagogia da Esperança.

5 Organizei uma bibliografia anotada deste material até 1980 que aparece como Apêndice B de Lima, 2015a, pp. 165-180.

6 Em Lima (2017) faço uma arqueologia detalhada do conceito de cultura do silêncio no pensamento de Freire.

7 Nas edições brasileiras (de 1974 e seguintes), Freire faz aqui, em nota de rodapé, a indicação para aprofundamento do tema no seu “Cultural Action for Freedom”, publicado originalmente pela Harvard Educational Review (maio/agosto de 1970) e depois no seu Ação Cultural para Liberdade e outros escritos (Paz e Terra, 1976). Registro que na primeira publicação da Pedagogia do Oprimido pela The Seabury Press, N. Y., em 1970, estranhamente, são omitidas as três referências ao conceito de cultura do silêncio que constam do texto original manuscrito (cf. [Freire, 1970], pp. 46, 59 e 175). 

8 Recorro aqui à tradução literal da palavra “converts” utilizada na 1ª. edição publicada nos Estados Unidos (cf. [Freire, 1970], p. 46).

9 Freire retoma o mesmo exemplo na Pedagogia da Esperança e esclarece que o episódio aconteceu quando de sua primeira visita a Nova Iorque, em 1967. Os participantes do grupo eram negros e porto-riquenhos. A experiência serviu para comprovar a semelhança de comportamento entre oprimidos de contextos totalmente diferentes. Diz ele: “Vi e ouvi coisas em Nova York (sic) que eram ‘traduções’ não apenas linguísticas, naturalmente, mas sobretudo emocionais de muito do que ouvia no Brasil e mais recentemente estava ouvindo no Chile” (p. 55).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ARAÚJO FREIRE, Ana Maria (org.). A Pedagogia da Libertação em Paulo Freire. São Paulo: Editora UNESP; 2001.

CAETANO, Maria do Rosário. Entrevista com Paulo Freire: “Mitificação, o fantasma que mete medo a Paulo Freire”. Correio Braziliense. 24 de outubro de 1982, p. 12.

FREIRE, Paulo. Manuscritos de Pedagogia do Oprimido. Fac símile digitalizado. São Paulo: Instituto Paulo Freire; 1968.

FREIRE, Paulo. Pedagogy of the Oppressed. New York: The Seabury Press; 1970.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra. 65ª. edição. 2018.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança – Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra; 1992.

FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra; 1976.

G1 (São Paulo). “Só um livro brasileiro entra no top 100 de universidades de língua inglesa”, 17/02/2016. Disponível em http://g1.globo.com/educacao/noticia/2016/02/so-um-livro-brasileiro-entra-no-top-100-de-universidades-de-lingua-inglesa.html. Acesso em 21/5/2018.

LIMA, Venício A. de. Comunicação e Cultura: as ideias de Paulo Freire. Brasília/São Paulo: Editora UnB/Editora Fundação Perseu Abramo. 2015a; 2ª. edição revista. 1ª. reimpressão.

LIMA, Venício A. de. Cultura do Silêncio e Democracia no Brasil – Ensaios em defesa da liberdade de expressão (1980-2015). Brasília: Editora UnB; 2015b.

LIMA, Venício A. de. “Sobre a Cultura do Silêncio”. Carta Maior. 12/12/2017. Disponível em

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia-e-Redes-Sociais/Sobre-a-cultura-do-silencio-1-/12/38974 . Acesso em 25/5/2018.

LEAL FILHO, Laurindo. “Um dia com William Bonner e nove mestres da USP”.  Observatório da Imprensa, Edição nº 358 de 06/12/2005. Disponível emhttp://observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfeitas/laurindo_lalo_leal_filho/Acesso em 21/5/2018.

TORRES, Rosa Maria. “Os Múltiplos Paulo Freire” in Araújo Freire, Ana Maria (org.). A Pedagogia da Libertação em Paulo Freire. São Paulo: Editora UNESP; 2001; pp. 231-242.

Carta Maior

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