Banco Central: uma reforma de olho no retrovisor

O projeto de autonomia da instituição endereça temas já resolvidos ao mesmo tempo em que se esquiva de tratar de problemas e desafios contemporâneos e futuros

Por Mario Schapiro, Eric Dantas e Pedro Salomon*

A Câmara dos Deputados votou no dia 10 de fevereiro de 2021 o PLP (Projeto de Lei Complementar) nº 19/2019, que dispõe sobre a autonomia do Banco Central do Brasil. A propositura cria mandatos fixos para diretores e presidentes do BCB, não coincidentes com os mandatos de presidentes da República eleitos. O projeto ainda estabelece que o BCB tem a estabilidade de preços como objetivo fundamental e a estabilidade do sistema financeiro e o fomento do pleno emprego como objetivos secundários.

Ideias e projetos de lei sobre autonomia do BCB têm sido debatidos no país ao menos desde o início dos anos 1990. Seus defensores justificam que a autonomia em relação ao Poder Executivo preservaria as políticas monetária e regulatória das pressões políticas, tornando críveis as expectativas de controle da inflação e, consequentemente, favorecendo a redução das taxas de juros domésticas. Os críticos desse arranjo, por sua vez, argumentam que o objetivo é, na verdade, blindar a política monetária e a regulação financeira de debates políticos substantivos. Ressaltam também que autonomia perante o poder político tem sido acompanhada de heteronomia perante poderes econômicos. Em outras palavras, a consequência da autonomia seria a de reservar a um grupo restrito de interesses um espaço privilegiado de decisão no Estado, garantindo com isso um controle desigual sobre a política econômica.

No Brasil, as iniciativas legislativas para se atribuir autonomia ao BCB não vingaram. Em parte, em razão da controvérsia política que o tema suscita e devido às idiossincrasias do contexto institucional brasileiro. Ao julgar a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 4/1988, que procurava impedir a aplicação imediata da regra constitucional sobre juros, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que todos os temas relacionados ao sistema financeiro, tratados no artigo 192 da Constituição Federal, deveriam ser disciplinados em uma única lei complementar. Como o rol do artigo 192 era significativamente amplo, na prática, o STF elevou drasticamente o custo político de se legislar sobre temas financeiros, incluindo-se nisso a autonomia do BCB. A questão só veio a ser resolvida com a Emenda Constitucional nº 40, de 2003, que refez a redação do artigo 192, admitindo sua regulamentação por diferentes leis complementares. Àquela altura, contudo, a reforma bancária, a estabilização monetária e mesmo a autonomia do BCB já haviam avançado, apartadas do Congresso.

A ausência da ação de parlamentares não impediu a construção institucional das políticas monetária e regulatória, encaminhadas por meio de medidas provisórias, decretos, resoluções e circulares. Em 1996, por resolução, o Executivo instituiu o Copom (Comitê de Política Monetária), alterando assim o modo de definição da política monetária e das taxas de juros. Em seguida, foi promovida a reforma do setor financeiro, que esterilizou a política monetária e a regulação financeira de influências políticas, saneando bancos privados, racionalizando bancos públicos federais, e eliminando boa parte dos bancos públicos estaduais, que atuavam como criadores de moedas. No decorrer deste processo de reforma Executiva e infralegal, a delegação de poderes do BCB foi paulatinamente remodelada, culminando, em 1999, com a criação, por decreto, do regime de metas de inflação, que delineou os termos de sua autonomia de fato.

Desde então, administrações com orientações políticas distintas, como FHC e Lula, lapidaram igualmente o sentido desta autonomia, priorizando o mercado e as escolas econômicas ortodoxas nas suas indicações ao BCB. Dados da tese de doutorado de Eric Gil Dantas (2019), mostram que 53% dos 24 diretores indicados entre o Plano Real e o segundo governo Dilma tiveram origem externa ao BCB e ao próprio Estado, vindos de instituições financeiras ou de instituições de ensino do mainstream econômico. A proporção aumenta quando a análise recai sobre as diretorias da área de política econômica especificamente — principais responsáveis pela política monetária da instituição. Nesse caso, 88% dos diretores vieram de fora do BCB, sendo 75% deles também formados em escolas do mainstream econômico — como FGV-RJ (Fundação Getúlio Vargas), Berkeley, Princeton, MIT e Harvard. Por fim, também é possível verificar que 74% de todos os diretores que deixaram o BCB neste período tiveram como destino instituições do mercado financeiro. No caso das diretorias de política econômica, este número foi de 92%.

O perfil similar das indicações, tanto em governos liberais como trabalhistas, revela que o Executivo tem delegado, na prática, a gestão monetária a uma linha de pensamento econômico tendencialmente conservadora e alinhada ao mercado. Além disso, desde 1999, os presidentes do BCB adquiriram um mandato fixo de fato. Gustavo Franco foi o último banqueiro central substituído no curso de um mandato presidencial. A partir de então, nenhum presidente da República exonerou o banqueiro central. E o tempo médio de permanência dos diretores no cargo é de quase três anos.

Assim, é quase inevitável pensar que o PLP nº 19 endereça temas já resolvidos pela prática institucional, ao mesmo tempo em que se esquiva de tratar de problemas e desafios contemporâneos e futuros. Parte substancial do processo de política monetária, por exemplo, continuará sendo disciplinada em decreto. O PL teria sido uma boa oportunidade para o Congresso estabelecer parâmetros legais para o exercício da autoridade monetária e regulatória do BCB, contribuindo assim para um maior controle democrático da autarquia.

Olhando para frente, tem crescido a percepção de que os Bancos Centrais não podem passar incólumes sobre outros temas com impacto distributivo, como as desigualdades social, racial e de gênero, ampliadas pela pandemia. Um artigo publicado em janeiro pelo Banco Mundial demonstra uma correlação entre a autonomia dos Bancos Centrais e o aumento da desigualdade de renda, reforçando assim pautas de reforma dessas instituições. Ao mesmo tempo, os Bancos Centrais têm sido crescentemente desafiados a tratar do aquecimento global, seja para regular os riscos prudenciais associados à destruição física dos ativos, seja para promover uma transição para uma economia verde.

A ausência de temas, presentes e futuros, e a prioridade para a preservação dos (não ameaçados) mandatos dos dirigentes do BCB sugere uma reforma de olho no retrovisor. Mais que isso, uma reforma que contempla apenas um segmento dos múltiplos interesses que orbitam as políticas monetária e regulatória. A pergunta a ser feita não é o que muda com o PL, mas o que não muda.

*Mario G. Schapiro é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP (Fundação Getulio Vargas).

*Eric Gil Dantas é economista e doutor em ciência política pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), pós-doutorando na Faculdade de Direito da FGV-SP.

*Pedro Salomon B. Mouallem é doutorando em direito na USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador da Faculdade de Direito da FGV-SP.

Do Nexo

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