“Suicidar-se para não ser assassinada”: genial estratégia para Justiça do Trabalho

Por Flávio da Costa Higa

“Entre todos os cadafalsos, o cadafalso político é o mais abominável, o mais funesto, o mais venenoso, o que é mais necessário extirpar. Essa espécie de guilhotina se enraíza no chão e, em pouco tempo, germina como um enxerto em todos os pontos do solo.”[2]

Victor Hugo

Neste 6 de junho — que ironicamente coincide com o “Dia D”, em que os bravos soldados aliados desembarcaram nas praias da Normandia, com o objetivo de libertar a França do jugo nazista —, li nesta ConJur artigo em que o colunista imputa à Justiça do Trabalho a “culpa” por ter tomado as decisões que tomou, e sustenta que elas são as responsáveis pelo esvaziamento da sua competência.

Em uma súplica penitente, ele implora por “perdão, perdão e perdão pelo que fizemos” e sustenta que a salvação da magistratura trabalhista está em renunciar às suas convicções e tentar emular — num exercício de adivinhação — os julgamentos da Suprema Corte, mais ou menos com a mesma expectativa que um animal de estimação bem adestrado tem de agradar o seu tutor e ser recompensado.

Nas entrelinhas, insinua que o STF (Supremo Tribunal Federal) não define a competência material de acordo com a resposta mais adequada do Direito, mas por critérios políticos, conforme o comportamento do órgão jurisdicional, e que ele tem castigado a Justiça do Trabalho como um pai castiga um filho indisciplinado. E o que é pior: o artigo não é uma denúncia a essa teratologia. É uma descompostura à Justiça do Trabalho.

Ocorre que a história nunca apoiou a covardia como estratégia de atuação do Poder Judiciário, e quem a adota costuma parar na latrina da História. Em 1999, o governo da Venezuela promulgou a lei de Reorganización Del Poder Judicial y el Sistema, por meio do qual todos os juízes deveriam ser reavaliados (artigo 4º) por uma Comissão de Emergência Judicial, que tinha o poder de os destituir sumariamente (artigo 6º). O resultado foi a demissão de mais de 400 dos 1.732 juízes existentes no país à época, e 80% dos magistrados passaram a ocupar o cargo de “juízes provisórios”.

Na ocasião, a Suprema Corte entendeu que o melhor para ela seria apoiar as reformas governamentais, apequenando-se diante do Poder Executivo, ao que a presidente do tribunal, Cecilia Sosa, se demitiu por considerar “enterrado el Estado de derecho”, e, ao periódico El País vaticinou: “sencillamente, la Corte Suprema de Justicia de Venezuela se suicidó para evitar ser asesinada. El resultado es el mismo: está muerta”.

Atuar como um magistrado “biruta” — a inclinar-se conforme a direção do vento (Wind direction indicator (WDI) ou windsock) — também não parece trazer grandes dividendos. Na América racista e escravagista de meados do século 19, a decisão pautada pelo regime vigente significava negar aos negros a condição de pessoas, e, como coisas que eram, não poderiam ser considerados cidadãos norte-americanos, conforme decidido pela Suprema Corte norte-americana em Dred Scott v. Sandford, 60 U.S. 393 (1857).

Assim, o “bacana” para ser querido pela sociedade da época era dizer que preto não era gente. Hoje, essa é considerada a pior decisão da história da Suprema Corte norte-americana,[3] e os dissidentes, Benjamin Robbins Curtis e John McLean, foram os que deixaram a admoestação de que o Direito também existe para defender interesses contramajoritários.

Spacca

A literatura mostra igual predileção aos intrépidos, em detrimento dos pusilânimes. Antígona, ao lutar contra Creonte para dar enterro digno ao seu irmão Polinice, não temeu pela sua vida, e disse: “defrontar-me com a morte não me é tormento. Tormento seria, se deixasse insepulto o morto que procede do ventre de minha mãe”.[4] Ela sabia que a pior tirania é a da própria consciência.

Além de Sófocles, Shakespeare também leciona com maestria a esse respeito. Em Henrique 4º, o lorde juiz tem a ousadia de prender o filho do rei, por contempt of court (ele o havia maltratado e esbofeteado em audiência). O magistrado argumenta que estava investido do poder real, e, ao ser agredido, ainda que pelo filho do rei, agredida fora a própria Coroa. Ao fim, o filho do rei dá-lhe toda razão e elogia a sua independência, dizendo: “o senhor julgou bem, como juiz; retenha, pois, a espada e a balança”. “Eu desejo aumentar suas honras. Até viver pra ter um filho meu e como eu ofendê-lo e obedecê-lo, pra que eu possa dizer, como meu pai, ‘Feliz de mim, que tenho alguém tão probo que ousa justiçar meu próprio filho’.”[5]

Também é difícil dar uma conformação jurídica à tese exposta no artigo. O Código de Ética da Magistratura Nacional — Resolução CNJ nº 60/2008 — impõe “ao magistrado pautar-se no desempenho de suas atividades sem receber indevidas influências externas e estranhas à justa convicção que deve formar para a solução dos casos que lhe sejam submetidos” (artigo 5º).

Não há fórmula capaz de compatibilizar tal preceito com a ideia de bajular a Suprema Corte. Como é possível decidir sem interferências indevidas, se a bússola do magistrado do trabalho passa a ser uma especulada chancela do STF?[6] Onde fica a tal independência se eu não devo pensar na solução mais justa, mas sim se ela vai ou não comprazer o órgão de cúpula? O autor sugere que “o STF vem sinalizando que nosso exagero geraria a perda de competência”. Na sua apocalíptica compreensão, as decisões têm vindo com sinais — se diretos ou subliminares, o texto não esclarece — que temos falhado em captar. Falta-nos um profeta para apontar o caminho da redenção.

O STF não é um oráculo, tampouco detém o gabarito da Constituição Federal. É simplesmente o órgão investido da autoridade de “errar por último”. Conforme escólio de Rui Barbosa, citado pelo ministro Celso de Mello, “em todas as organizações políticas ou judiciais sempre há uma autoridade extrema para errar em último lugar. […]. O Supremo Tribunal Federal, não sendo infalível, pode errar, mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer alguma cousa que deva ser considerada como erro ou como verdade” (AI 733.387/DF, 2ª T., 16-12-2008). Isso é ontológico no Estado de Direito (CF, 1º, caput).

O discurso de indulgência clama por especial misericórdia pelo que “fizemos com a reforma trabalhista de 2017” e, aqui, ainda acrescenta que “todo perdão será pouco pelo que a comunidade jurídica trabalhista fez”. Ao tecer loas à Lei nº 13.467/2017, o autor sustenta que o legislador “refundou” os valores necessários para uma nova proteção trabalhista, como, e.g., a “responsabilidade dos atores sociais no uso da Justiça do Trabalho (sucumbência e gratuidade)”.

Aqui, entretanto, um tremendo ato falho por parte do autor: quem reputou inconstitucionais os dispositivos da reforma trabalhista que impediam o acesso à justiça foi a Suprema Corte (ADI 5.766, Pleno, 20-10-2021) e não a Justiça do Trabalho. E o fez de maneira absolutamente correta, como havia feito a Suprema Corte do Reino Unido — seria a terra de Margaret Thatcher, a “Dama de Ferro”, um país excessivamente protecionista? –, em R. v. Lord Chancellor [2017] UKSC 51.

Sobre o tema, escrevi que o Brasil havia inventado a “justiça gratuita paga”.[7] Olhem eu aí a confessar o que o autor denominou de criação de artigos “para impedir a aplicação da nova lei”. Seria isso a condenação da criação de artigos por quem acabou de criar um artigo? É o máximo do paradoxo. Uma mordaça seletiva. E equivocada, na medida em que o trabalho literário é “um espaço de resistência, porque reafirma o horizonte da liberdade”.[8]

Mas se isso é ilícito, não fui eu o único a delinquir, devo dizer em minha defesa. Poderia citar uma plêiade de doutrinadores, mas, pela notoriedade e espírito independente e crítico em relação à Justiça do Trabalho, vou de Lenio Streck — preciso atualizar-me para saber se o autor está nessa vala comum taxonômica de trabalhistas ideológicos e gananciosos —, que, além de defender a inconstitucionalidade do contrato intermitente, afirmou que “a reforma é um prato cheio para a jurisdição constitucional. Por exemplo, a) a inconstitucionalidade na jornada 12×36; b) inconstitucionalidades na negociação coletiva, c) nas atividades insalubres; d) no trabalho da gestante; e) na dispensa coletiva; e) enfim, há muita inconstitucionalidade […]”. Que feio, não?

Pela lógica do articulista, o STF deve desculpas ao próprio STF noutro episódio, ao declarar a inconstitucionalidade de dispositivo da reforma trabalhista que condicionava o afastamento de gestantes ou lactantes de atividades insalubres à apresentação de atestado médico (ADI 5938, Pleno, 28-11-2019). Segundo a sua tortuosa tese, só pode ter sido, nesses dois casos, a Suprema Corte quem ofereceu “resistência explicita à aplicação de um texto legal”, impedindo “a última tentativa de modernização capaz de salvar a Justiça do Trabalho”.

O artigo promove a chacina do controle de constitucionalidade, existente, no mínimo, desde Marbury v. Madison 5 US 137 (1803). Que o controle difuso esteja previsto na Constituição (CF, 97) e na lei (CPC, 948 a 950), às quais o juiz presta compromisso de respeitar, no ato da posse (Lcp. n.º 35/1979, 79), é detalhe que não vem ao caso. Achou que a lei é inconstitucional? Decida como achar que o STF decidiria. E faça uma nota de rodapé pedindo enfáticas desculpas — mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa — por eventuais falhas em suas conjecturas e elucubrações.

Menciona-se que nós teríamos descartado “as demais relações de trabalho que, agora, o STF classifica como relações civis, comerciais ou, pior, de consumo”. Mas o que está errado, afinal? Se as relações são realmente civis, comerciais ou de consumo, que assim sejam rotuladas. Mas, se não são, e o STF assim as declara apenas para punir a Justiça do Trabalho, minando sua competência, não me parece que o erro esteja em quem reconhece o vínculo de emprego.

Causa perplexidade a afirmativa, em tom claramente acusatório, de que não “expandimos o pensamento para novas regulações do trabalho humano” e deixamos de admitir “novos modelos mais leves e flexíveis para a contratação de trabalhadores em diferentes formas de trabalhar”. Em primeiro lugar, o Direito do Trabalho sempre se pautou pelo princípio da “primazia da realidade”, segundo o qual prevalecem “los hechos sobre las formas, las formalidades o las apariencias”, ou seja, “importa lo que ocorre em la práctica[…]”.[9]

Dizer que a Justiça do Trabalho não pode reconhecer fraude nos rótulos contratuais estampados em documentos é negar vigência ao artigo 9º da CLT — seria o caso de ver se o artigo 9º da CLT também é lei ou se apenas a reforma trabalhista o é — sem pronunciar sua inconstitucionalidade. Asserir que não se pode interpretar determinado contrato como de emprego é criar o “crime de hermenêutica”. É desprezar o fato de que “interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao singular, através do particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o singular” (STF — ADPF 153, Pleno, DJ 6.8.2010).

E o STF reiteradamente disse que “tendo como causa de pedir relação jurídica regida pela Consolidação das Leis do Trabalho e pleito de reconhecimento do direito a verbas nela previstas, cabe à Justiça do Trabalho julgá-la” (CC 7950, Pleno, 01-08-2017), ou seja, desde sempre “a competência material é definida em função do pedido e da causa de pedir” (STF, RE 606003, Pleno, 14-10-2020).

Juiz não pede perdão por decidir. Juiz decide. E decide interpretando, porque ele não é simplesmente “a boca que pronuncia as palavras da lei” — como pretendia Montesquieu, ao asseverar que “les juges ne sont que la bouche qui prononce les paroles de la loi; des êtres inanimés qui ne peuvent en modérer ni la force ni la vigueur”. O Direito “é um meio para atingir os fins colimados pelo homem em atividade; a sua função é eminentemente social, construtora”,[10] que só faz sentido se “produzir resultados que sejam individual e socialmente justos”.[11]

Por isso, a despeito de todas as críticas, a Justiça do Trabalho ainda é necessária à manutenção de um Estado social, num país marcado por imensas desigualdades, miséria e fome. E se não for para prolatar decisões com independência — que, se for o caso, serão reformadas pela autoridade competente —, então o Direito do Trabalho “não passará de uma memória pálida e melancólica a dormitar em alfarrábios empoeirados”.[12]

Aos que não concordam com as minhas reflexões, não posso me desculpar. Não escrevo para agradar. Acredito, como Mill, que “somente através da diversidade de opinião há uma chance de disputa justa para todos os lados da verdade”.[13] E sigo meu caminho, orientado pelo mantra de Sêneca: “que nosso trabalho não seja em vão e sem resultado, nem o resultado indigno de nosso trabalho; pois geralmente a amargura segue-se se não tivermos êxito ou se tivermos vergonha de o ter conseguido”.[14]

[2] HUGO, Victor. O último dia de um condenado. São Paulo: Estação da Liberdade, 2018, p. 165.

[3] BRANDS, H. C. 2020. Dred Scott: the Supreme Court’s Worst Decision. American Heritage. Dec. 2020, v. 65, n. 8.

[4] SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: L&PM, 2016, p. 34-35.

[5] SHAKESPEARE, William. Teatro Completo, v. 3. Peças históricas. Henrique IV. Parte 2. São Paulo: Editora Nova Aguilar, 2016, ato V, cena II, p. 341.

[6] Evidentemente, nem sequer se cogita aqui a desobediência a precedentes obrigatórios, nos termos arrolados pelo art. 927, I a V do CPC. Fala-se aqui de elucubrar a respeito de qual posicionamento seria mais dúctil aos olhos do STF, inclusive sobre questões que ele nunca enfrentou.

[7] MALLET, Estêvão; HIGA, Flávio da Costa. Os Honorários Advocatícios após a Reforma Trabalhista. In: AGUIAR, Antônio Carlos. Reforma Trabalhista – Aspectos Jurídicos. São Paulo: Quartier Latin, 2017, pp. 101-133, p. 121.

[8] BASTOS, Hermenegildo. Pósfácio. In: RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. São Paulo: Record, 2021, p. 134.

[9] PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Los Principios del Derecho del Trabajo. Montevideo: Biblioteca de Derecho Laboral, 1975.

[10] MAXIMILIANO, Hermenêutica e aplicação do direito. 9 ed. 3 tir. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 169 e 49.

[11] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 8.

[12] HIGA, Flávio da Costa. O Direito do Trabalho está “por fora”! Consultor Jurídico. 27 de junho de 2022, 14h59.

[13] MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Campinas: Vide Editorial, 2018, p. 87.

[14] SÊNECA. Sobre a brevidade da vida. Jandira: Principis, 2021, p. 86.

Flávio da Costa Higa é juiz e doutor em Direito pela USP (Universidade de São Paulo).

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