‘Terra de males’: STF ataca direitos trabalhistas e suspende processos e decisões sobre ultratividade das normas coletivas

O princípio da ultratividade significa, no Direito Coletivo de Trabalho, que as normas fixadas em acordos e convenções coletivas de trabalho se incorporam ao contratos individuais de trabalho, projetando-se no tempo. Essa questão havia sido fixada em 14 de setembro de 2012, quando o Tribunal Superior do Trabalho (TST) estabeleceu uma nova redação para a Súmula 277, segundo a qual as cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas somente poderiam ser modificadas ou suprimidas mediante uma negociação coletiva de trabalho. Ou seja: eles deveriam continuar sendo respeitadas e aplicadas mesmo depois do término da vigência do termo coletivo.

Acontece que, na última sexta-feira (14), na véspera do Dias dos Trabalhadores em Educação, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu medida cautelar — atendendo Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 323, ajuizada por ninguém menos que a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) para questionar a Súmula 277 — e suspendeu todos os processos e efeitos de decisões no âmbito da Justiça do Trabalho que discutam a aplicação da ultratividade de normas de acordos e de convenções coletivas. Trata-se de um verdadeiro ataque aos trabalhadores e seus direitos.

“A cada data-base, as negociações coletivas, caso haja, começarão da estaca zero, pois que as cláusulas contidas nos instrumentos coletivos de trabalho perderão, automaticamente, a sua validade ao fim de sua vigência”, destaca o consultor jurídico da Contee, José Geraldo de Santana Oliveira. “Em outras palavras: a realçada decisão traz de volta ao movimento sindical a maldição de Sísifo. (…) cada negociação, insista-se, se houver, será um pesadelo de colossal dimensão, haja vista não subsistir nada das anteriores.”

Leia abaixo o artigo escrito pelo consultor jurídico da Contee, José Geraldo de Santana Oliveira, sobre este e outros taques proferidos pelo STC contra os  direitos trabalhistas:

Os índios tupis — habitantes nativos do Brasil — acreditavam em uma “Terra sem mal”, que consistia num lugar em que a felicidade era permanente (e que, por ocasião da chegada dos portugueses, no início do século XVI, ficava no litoral).

A peregrinação a essa “Terra”, segundo Adelmir Fiabani — citando Vainfas, no livro Mato, Palhoça e Pilão —, feita em ritual regado a danças, transes, cânticos e a tabaco, horrorizou os colonizadores, que a denominaram de “santidade”.

Com a chegada dos portugueses  ao litoral, os tupis passaram a imaginar o deslocamento de seu paraíso para os sertões; até que concluíram que, com a colonização, não havia “Terra sem mal” em nenhum lugar do Brasil.

Os colonizadores e a historiografia não se aprofundaram no estudo dessa utopia Tupi. No entanto, passados 500 anos desde a constatação de sua existência, e tomando-se por base o atual contexto sócio-político brasileiro, pode-se inferir que dela não faziam parte a Presidência da República, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) — “guardião” da Constituição Federal (CF); nem se cogitavam terceirização sem limites; supremacia do “negociado” sobre o legislado; ajuste fiscal; reforma da Previdência Social; e congelamento de investimentos em políticas públicas de educação, saúde, seguridade social, moradia etc.

Isso porque esses ativos e evidentes atores e suas peças, ao contrário do que almejavam os tupis, buscam uma Terra só de males para quem trabalha e faz o  Brasil.

O STF, a quem a CF, no seu Art. 102, atribui a sua guarda, não mede esforços para se constituir no “guardião” que garante o êxito de todas as medidas necessárias à implantação, em definitivo, da Terra só de males.

São elucidativas desta condição, as decisões proferidas nos seguintes processos:

1- Recurso Extraordinário (RE) N. 713211 — relator ministro Luiz Fux, que visa a romper todo e qualquer obstáculo à disseminação da terceirização sem limites e sem parâmetros.

2- RE N. 709202 — relator ministro Gilmar Mendes, que limitou a prescrição do direito de reclamar o FGTS não depositado a cinco anos, revogando o Art. 28 da Lei N. 8036/1990 e a Súmula N. 362, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que a assegurava com a duração de 30 anos.

3- REs 590415 — relator ministro Luiz Roberto Barroso — e 895759 — relator ministro Teori Zavascki, que pavimentam o caminho para a supremacia do  “negociado” sobre o legislado.

4- E, agora, a Decisão Liminar proferida pelo ministro Gilmar Mendes na Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) N. 323, de iniciativa da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), para suspender a vigência e a eficácia da Súmula N. 277 do TST, que garante a ultratividade das normas contidas em instrumentos coletivos de trabalho, convenções, acordos e sentenças normativas, até que outro de igual natureza seja firmado.

Se o FGTS, imposto pela Lei N. 5107/1966, ao acabar com a estabilidade decenal que remontava à Lei Eloy Chaves, de 1923, representou a maior derrota dos trabalhadores no âmbito de seus direitos, a Decisão Liminar, proferida na mencionada ADPF, caracteriza-se como a maior desde a CF de 1988 e com consequências muito mais danosas do que as emanadas do FGTS na sua origem.

Agora, com essa famigerada decisão, a cada data-base, as negociações coletivas, caso haja, começarão da estaca zero, pois que as cláusulas contidas nos instrumentos coletivos de trabalho perderão, automaticamente, a sua validade ao fim de sua vigência. Importa dizer: ao reverso do que assegura a Súmula suspensa, não se incorporam aos contratos de trabalho.

Em outras palavras: a realçada decisão traz de volta ao movimento sindical a maldição de Sísifo — que, na mitologia grega, fora condenado a rolar pedra descomunal do pé ao topo de uma íngreme montanha, e esta, mal chegava ao topo, rolava desgovernadamente ao pé, de onde partira; doravante, cada negociação, insista-se, se houver, será um pesadelo de colossal dimensão, haja vista não subsistir nada das anteriores.

Vale salientar que o STF justifica as três últimas citadas decisões como medidas necessárias à valorização da negociação coletiva, reconhecida pela Art. 7º, inciso XXVI, da CF.

Todavia, propositadamente, não diz como isso será possível no contexto de 12 milhões de desempregados; de ampla e irrestrita possibilidade de demissão, por denúncia vazia do contrato de trabalho; de total impossibilidade de se fazer greve, em decorrência das reiteradas decisões judiciais de abusividade, de fixação de percentual de trabalhadores que a ela não podem aderir, correspondente a 80% do total — às vezes, até a 100%, como no caso do metrô de São Paulo, em 2015 —, de interditos proibitórios; e de nenhuma punição para as sistemáticas e progressivas práticas antissindicais das empresas e de seus sindicatos.

Para dissipar eventual dúvida sobre os caminhos que o STF vem trilhando — se é que ainda paire alguma — de insofismável defesa dos interesses do capital em detrimento do trabalho, basta que se reflitam sobre os seguintes acontecimentos.

No RE 713211, o ministro Luiz Fux, em despacho monocrático, indeferiu o recurso interposto pela empresa Cenibra contra o Acórdão do TST que a condenou por terceirizar a atividade-fim; posteriormente, a Turma do STF, da qual o ministro participa, julgando novo recurso da empresa contra a destacada decisão, confirmou-a.

Contudo, em novo recurso da empresa, que se limitou a repetir as alegações, antes rejeitadas por ele e pela Turma, o ministro, em surpreendente e inusitada decisão, não só o admitiu, sob o pálido argumento de que a Súmula 331 do TST viola o fundamento da livre iniciativa (Art. 1º, inciso IV, da CF) e a garantia de que “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”(Art. 5º, inciso II, da CF), bem como conseguiu que cinco outros ministros, além dele, reconhecessem-lhe repercussão geral, ou seja, a decisão de mérito que vier a ser tomada nele, já sinalizada pelo ministro relator, alcançará todos os trabalhadores  brasileiros, não só as partes que o integram.

No tocante à ADPF N. 323, os fatos são tão, ou mais, reveladores; vejam-nos:

a nova redação da Súmula N. 277 do TST, foi publicada no Diário de Justiça Eletrônico (DJE), edição do dia 25.10.2012; a ADPF foi protocolada no dia 27.6.2014. Por que, somente aos 14 de outubro de 2016, quatro anos após a publicação da Súmula, e mais de dois do ajuizamento da ADPF, foi proferia Decisão Liminar suspendendo a eficácia daquela? Por que conferir à essa decisão efeito ex tunc (retroativo à publicação da Súmula), se a jurisprudência do STF, há muito, já se sedimentou no sentido de que os efeitos de suas decisões são ex nunc, ou seja, a partir delas?

Em 2009, o STF, no julgamento AI 731.954-RG, que discutia a constitucionalidade da mesma Súmula N. 277, com a redação anterior, que limitava a integração das cláusulas de instrumentos normativos de trabalho ao seu período de vigência, fixou tese de que a sua integração, ou não, em definitivo, é de natureza infraconstitucional, cabendo ao TST dirimi-la; o que é inclusive registrado pelo ministro Gilmar Mendes, em sua decisão, sob comentários.

Por que agora que o TST sedimentou o entendimento de incorporação definitiva das citadas garantias por meio da nova redação da Súmula N. 277 a matéria adquiriu natureza constitucional, não tendo mais o TST competência legal para decidi-la?

Tomando-se por base as comentadas decisões do STF, em franca e nociva negação dos valores sociais do trabalho (Art. 1º, inciso IV, da CF), parece não restar dúvida de que o próximo fantasmagórico episódio será o da liberação total, sem regras e sem limites, da terceirização, fazendo-o no RE N. 713211. Aliás, essa sinalização é colhida do despacho do ministro relator, Luiz Fux.

Por tudo isto, é forçoso concluir que a decantada reforma trabalhista, uma das prioridades dos representantes do capital que ocupam os três poderes da República, tornou-se desnecessária, pois o STF está prestes a conclui-la, com alcance mais nefasto do que faria o Congresso Nacional; e, o que é mais importante, para o capital, sem traumas e sem possibilidades de alterações.

Pobre Brasil, tão de longe de Deus e guardado pelo STF, parafraseando o presidente mexicano Lázaro Cárdenas.

Por José Geraldo de Santana Oliveira

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